No Norte de Portugal há um riquíssimo legado centenário que impressiona e que urge preservar. Uma tradição que transforma aprendizes em mestres. E que é reconhecido em todo o Mundo.
Invariavelmente, as matizes da alvorada de São Mamede do Coronado são rurais. A lembrar tempos ancestrais, de quando as tradições moldavam as vidas, esculpiam os quotidianos. Um período tão imemorial e antigo quanto a admirável arte sacra que daqui tem brotado, com profundas raízes históricas e sociais. Um valor cultural único deste território trofense.
São Mamede do Coronado é terra de gente de trabalho e de talento, que aperfeiçoou ao longo de um século a sabedoria que ajuda a ligar este Mundo a um outro — para muitos mais profundo, feito de fé — através do poder e simbolismo da arte sacra.
“Quase que nasci nesta arte. Comecei aos 13 anos e aos 90 anos ainda não estou cansado dela, de pintar”, confessa Boaventura Matos, um dos mais experientes artistas.
Os atuais mestres foram um dia aprendizes e foi com o melhor que Boaventura cresceu neste mundo: José Ferreira Thedim. O neto, já que o pai e o avó, entre os pioneiros neste labor, ostentavam o mesmo nome.
Em 1920, José Ferreira Thedim (1891-1971), seu parente, executou a primeira imagem da Virgem de Fátima, para a Capelinha das Aparições, no Santuário de Fátima. Daqui não só surgiu um novo tema iconográfico que foi difundido por todo o país, como resultou num substancial aumento de encomendas, levando a uma nova economia ligada ao setor, bastante concentrado no concelho. Perante a laicidade do regime republicano vigente, o fenómeno de Fátima tornou-se num baluarte da propaganda de reafirmação da religiosidade do catolicismo e do conservadorismo portugueses. Uma boa ajuda…
Especializado na pintura da arte sacra, Boaventura, que também é escultor, atravessou a segunda metade do século XX crescendo na arte até ter a sapiência, vontade e autonomia para criar o seu próprio projeto, nos anos 1980.
“Religiosamente, entro na minha oficina às 08:00. Passo aqui o meu tempo, a fazer o que gosto. Todas estas obras levam o meu cunho. E é um orgulho tê-las espalhadas pelo Mundo”, conta. Com igual humildade, assume que há obras que gostaria de não entregar, de tão “encantado” que fica com o resultado final. “Algumas, fico a olhar para elas e tenho pena quando vão…”.
Imutável a sua dedicação e experiência que o levou, entre inúmeros desafios, a intervencionar a imagem da Virgem Peregrina, sendo o Santuário de Fátima um dos principais clientes do seu vasto espólio.
DISCÍPULOS QUE SE TORNAM MESTRES
Jorge Brás começou na oficina de Boaventura e agora tem uma própria, igualmente de produção artesanal, numa garagem já repleta de história. Distingue-se na escultura, enquanto Boaventura se afeiçoou mais à pintura.
No atelier de Jorge encontro goivas, palhetes, coxibis, maços, esquadros, grosas, réguas, compassos, plainas, serras, tornos, machados e até motosserras, para os reptos de maior dimensão. A meus olhos, um caos de estímulos. Na realidade de Jorge, extensões das suas ideias, complementos às suas mãos.
“Venho aqui todos os dias, até ao domingo. Senão, não me sinto bem. Contemplo o trabalho feito. Ninguém faz nada sem ser eu. Faço de coração e com um gosto imenso. Quem quiser aprender a arte… tem de gostar disto, senão não vale a pena”, garante.
De comum aos vários mestres, uma paixão infinita pela arte sacra. E o sentimento de ajudar o Vale do Coronado a ser um destino especial nesta arte, um privilégio que raríssimos lugares do planeta ostentam. De facto, da Trofa é exportada iconografia religiosa para todo o globo. Com peças tão diversas e amplas, que chegam a atingir alguns metros.
Nesta deambulação pelas oficinas-fábrica artesanais do Coronado há odor a terra: a agricultura está aqui ainda profundamente enraizada. Cruzo-me com cavalos, cães e gado bovino. E um grupo de bombos a atuar pela vila em busca de apoios para que a devoção não seja esquecida e as cerimónias que a celebram tenham fundos para persistirem, mesmo em época de pandemia.
Augusto Ferreira aproxima-se dos 50 anos e, como muitos, está na arte desde bem cedo, tendo começado aos 13 anos com o hábil Avelino Ferreira Vinhas. É escultor e um dos mais novos no ofício, assumindo o seu “encantamento” desde que, em miúdo, ia à igreja e se fixava na abundante iconografia.
“O maior desafio é dominar a técnica, concretizar o que visualizamos. Fazer com que a mão faça o que o nosso cérebro pretende. Não é fácil”, assegura.
Viveu um ano na Alemanha e posteriormente concluiu um curso de Conservação e Restauro. Tem, por isso, particular sensibilidade para o projeto que a Câmara Municipal da Trofa tem em mente, de aproveitar a sapiência dos que ainda resistem para assim desenvolver uma escola de arte sacra.
“Somos escultores. Escultores especializados em arte sacra, algo raro no Mundo. E é importante valorizar este legado. Que a autarquia avance com o projeto da escola, pois cá estaremos para sermos parceiros em manter vivas as tradições de São Mamede do Coronado”, vinca, sublinhando a importância artística deste ofício.
Augusto é mais um testemunho vivo de todo o conhecimento que passou de mestres para aprendizes. Que são, cada vez mais, precisos, para que este património cultural – material e imaterial – floresça e ganhe, cada vez mais, o espaço merecido. Este ‘saber-fazer’ não pode ficar por aqui…
O legado do Vale do Coronado está espalhado por todo o país, mas também pelos quatro cantos do mundo, uma vez que, nas inúmeras colónias e comunidades portuguesas na diáspora, não há quem não tenha uma destas imagens ao culto.
DA MATÉRIA-PRIMA AO ACABAMENTO
A produção de imaginária religiosa, através da escultura talhada, usualmente em madeira (durante décadas vingou o cedro do Brasil, leve e algo denso, contudo, agora, a tola tem ganho espaço), com recurso a um modelo ou a uma estampa, obedece a um processo metódico que implica o domínio da técnica, o conhecimento da natureza da matéria-prima e o uso de ferramentas adequadas.
A marcação, a medição, o corte, a percussão e o polimento são fases de maior ou menor complexidade, dependendo do material escolhido e do detalhe da obra em si. Nestas oficinas artesanais há instrumentos de todo o tipo que se fundem em mãos experientes.
O ‘saber-fazer’ desta arte exige o saber afiar, saber talhar, saber olhar, saber proporcionar, saber misturar… dominar tantas áreas que atingir o talento de mestre pode demorar uma vida.
Depois de executada, a escultura é pintada, sendo que a óleo continua a ser a forma mais comum, já que permite acentuar o realismo e expressividade dos rostos. Por exemplo, o sofrimento, através de feridas e manchas de sangue.
“Era pena que acabasse a arte dos santeiros. Gostava que outros a continuassem, que prevalecesse para a posterioridade. Para mim, pela idade que tenho, não será por muito mais tempo. Mas vou trabalhar até quando Deus me disser…”, confessa Boaventura, enquanto vai retocando um pormenor de São Francisco.
Habilidade e conhecimento técnico, aliados à vontade e gosto pela temática, são ingredientes fundamentais para um dia se chegar a mestre.
Entretanto, e enquanto a escola não está operacional, e para que nada se perca, a autarquia da Trofa tem espólios em reserva, estudando-os e conservando-os para futura musealização. José Ferreira Thedim e Avelino Moreira Vinhas, que tinha a antiga Oficina Studio Nossa Senhora de Fátima, são nomes que, entre outros, garantirão a imortalidade da arte sacra do Vale do Coronado.