A menos de duas horas de voo, há um país que premeia quem enfrenta preconceitos religiosos e de segurança.
E recompensa quem foge do turismo de massas. Muito Património Mundial UNESCO. História milenar. Arquitetura sublime. Gastronomia surpreendente. Preços convidativos. E gente que nos faz sentir verdadeiramente em casa…
Estamos preparados para sair para a nossa primeira manhã em Argel, mas Nádia logo nos trava: “Então, não vão tomar o pequeno-almoço?”. Na verdade, tínhamos prescindido desta modalidade no Airbnb, pois desejávamos experienciar essa sensação de começar o dia nas ruas da capital. São as vizinhas da nossa anfitriã que não deixam. Diariamente, mandam bolos, compotas, pão ou qualquer outro mimo. Nádia não está sozinha na “responsabilidade” de fazer com que os seus primeiros hóspedes se sintam realmente em família. Como se tal preciso fosse. Saber receber é uma missão de todos. Nada como um país que começa por nos encantar através da bondade e simplicidade das pessoas.
Já nas movimentadas artérias, bastam meia dúzia de passos para mergulharmos numa metafórica Paris histórica e algo apocalíptica. Polvilhada por edifícios brancos com varandas invariavelmente adornadas de toldos azuis. A arquitetura está lá – ou não fosse o país dominado, até 1962, pela França – mas a decadência também. Desde a saída dos gauleses, não houve uma obra de reconstrução. Reabilitação é palavra desconhecida.
“No dia em que os franceses debandaram, as suas vidas ficaram presas a gestos do quotidiano que revelam a pressa em fugir”, conta-nos Nádia. “Um pouco por todo o lado, sobram exemplos de que a saída não foi planeada. Refeições inacabadas. Pijamas dobrados em c
ima da cama. Jogos de cartas suspensos. Deveres da escola a meio… Mil e uma coisas do nosso dia-a-dia abruptamente interrompidas, por uma urgência que mudou o país”, acrescenta a nossa anfitriã, num dos serões intemporais nos quais nos vai falando da alma da Argélia.
Nesse distante 05 de julho de 1962 muito aconteceu, além da independência do país. O fim de um ciclo para milhares pode bem ser o início de outro para outros tantos. Na Casbah, a cidade velha amuralhada, sem idade, nasceu uma bebé que simboliza a revolução. E que 54 anos depois está diante de nós, narrando-nos a sua Argélia ao sabor de delongado chá. Aquela à qual regressou há três anos e que não pretende abandonar até ao fim dos seus dias. A mesma que a prende às raízes, quando o marido está em missão diplomática francesa no Afeganistão.
ATREVIMENTO NAS ‘ENTRANHAS’ DE ARGEL
A curiosidade é mesmo a melhor forma de conhecer qualquer destino, este em particular. Uma discreta indiscrição que o entusiasmo muitas vezes faz derivar para incauta intromissão. Toda a porta aberta é uma oportunidade de encantamento. Cada edifício abraçado pela decadência, um mundo surpreendente. Estátuas. Pinturas. Azulejos. Frescos. Pátios. Varandas… Um autêntico museu nas entranhas de Argel. Recompensadora a ousadia para com portas entreabertas. Ou a confirmação de que estas estão, efetivamente, fechadas.
Numa das múltiplas vezes em que somos guiados pelo deslumbre, atingimos um terraço. O cimo do prédio tem construção clandestina. A mesma que polvilha todos os prédios em redor. “Quando, nos anos 90, o terrorismo dilacerou o país, houve um grande êxodo das zonas rurais para Argel, em busca de proteção, maior segurança. A cidade já estava lotada. Piorou. Houve que improvisar e assim Argel ganhou uma nova característica”, relata-nos Nádia. Quando os franceses abalaram nos idos anos 60, as habitações já tinham sido tomadas por argelinos. Invasão validada há uns tempos quando o governo exigiu um valor, “simbólico”, para que os títulos de propriedade se tornassem efetivos, legais.
Seguimos pela rua D’Isly na qual tudo é ‘vintage’: a farmácia Silhadi. Quiosques. Históricas lojas de fotografia. ‘Tascos’ com frescos no teto… e cavalheiros que nos trocam os euros a um valor bem superior ao cambio oficial.
Casbah, centro amuralhado que a UNESCO celebra
A menos que inusitados receios os afastem de lugares degradados, a área mais histórica de Argel é imperdível. Trata-se da alma desta sociedade. Sempre a subir, por quelhos que nos desvendam história e nos transportam a uma envolvente viagem no tempo. Um sinuoso labirinto polvilhado de casas decrépitas e em ruínas, contrastando com o tipo de vida e tradições seculares que resistem. E persistem. Sem vacilar. Vamos encontrando ruas inteiras devotas a profissões específicas. Latoeiros, sapateiros, antiquários, costureiros, padeiros… Crianças que jogam à bola. Idosos que se deslocam lentamente. O muezim que chama para a oração. Há estímulos para todos os sentidos…
Há um artesão que sobressai. Pela loja. Pela formação que tenta dar aos jovens, “para que esta arte não se perca”. E porque a sua casa tem um terraço que nos brinda com uma das mais espantosas vistas. O nosso olhar não tem barreiras desde a alta até à baixa Casbah, passando por edificações mais elitistas, e desfalecendo no horizonte, no mar. Aquele que alberga um dos maiores portos de África.
Inesperada azáfama aqui no topo. Hoje roda-se um filme histórico. Que inclui soldados. Com armas de pau. Um fascino enraizado na população. Encontraremos destes brinquedos – bastantes são imitação perfeita – um pouco por todo o país. A Casbah vive como sempre o fez. É uma aldeia sem pressa – nem vontade – de perseguir a modernidade.
Um aprendiz do artesão cuja casa visitamos vai-nos guiando para que não percamos alguns pontos que entende interessantes. Até que, percebendo que estamos mais confortáveis em exploração solitária, se despede desejando-nos a melhor das experiências. E age de forma assertiva, para que não tenhamos dúvidas de que a sua companhia foi altruísta, sem nada esperar em troca.
Há uma prisão com muros fotogénicos. O exército não concorda com a nossa ousadia. Será a primeira vez que somos convidados a entrar numa esquadra para justificar as fotos. Não são possíveis, nem desejáveis. Devem ser apagadas. E somos convencidos a evitar repetir a iniciativa junto de instalações militares ou policiais. Ouviremos o mesmo várias vezes…
Incrédulos, deambulamos por uma realidade que nos parece virtual. Estamos embeiçados por Argel e não encontramos visitantes estrangeiros. Em quase duas semanas de incontáveis quilómetros, a
penas uma família de gente de outras paragens a usufruir de esplanada. A ausência do turismo, que o terrorismo aniquilou nos anos 90, torna a nossa experiência ainda mais intensa. Genuína. Profunda. A Argélia já foi dos países mais procurados de África, mas agora ninguém cá vem para confirmar os inúmeros encantos do maior país do Continente: uma preciosidade para quem sonha com destinos estimulantes longe das massas.
A Casbah é um espaço fortificado de origem berbere. A de Argel foi fundada sobre as ruínas de Icosium, um pequeno interposto comercial criado por 20 amigos do mítico Hércules. Foi fenício, berbere e romano. Depois vieram os Vândalos e outros tantos se seguiram. Aqui encontramos várias mesquitas históricas como El Djedid (1660) ou a de Ketchaoua (1794). Ao lado desta, o Dar Hassan Pacha, que já foi a mansão mais antiga da cidade. O interior da casa foi reformado em 2005. Infelizmente está fechada ao público. Que seja por pouco tempo.
IMPERDÍVEL EM ARGEL…
Argel está encravada entre o Mediterrâneo e imponentes florestas montanhosas. Palácios otomanos, mesquitas mouras, arquitetura árabe, fortificações berberes, casas coloniais francesas, avenidas ‘parisienses’… tudo um pouco adorna um destino que se destaca também pela grande e a nova Mesquita, a Biblioteca Nacional, a Praça dos Mártires, o Museu Bardo e vários monumentos e fortes. Vagueando pelas suas artérias, descobrimos um verdadeiro museu a céu aberto, tal a quantidade de imóveis de interesse público.
A grande mesquita é a mais antiga da capital. Dizem que já existia em 1018. O interior é quadrado e dividido em corredores por colunas que são unidas por arcos mouros. A Mesquita Nova tem a forma de uma cruz grega e remonta ao século XVII. É rodeada por uma cúpula branca enorme e com quatro cúpulas pequenas nos cantos.
Afastada do centro, a Basílica Nossa Senhora de África é obra católica recentemente restaurada com história de culto repartido. Interessante e enriquecedora numa das colinas com olhar privilegiado para a baia de Argel. Regularmente, recebe concertos.
O vistoso edifício central dos correios é um dos empreendimentos mais característicos de Argel e, muito provavelmente, o mais bonito, sobressaindo os seus detalhes árabes. Felizmente, em bom estado de conservação, em local central, animado e concorrido.
Junto ao mar, o Bastião 23 é um antigo complexo de vários palácios unidos. Bem preservado, apresenta uma arquitetura e decoração que merecem apreço, tal como o museu e exposições que acolhe este Centro de Artes e Cultura do Palais de Rais. O último andar é especialmente interessante, com tetos em madeira talhada e pinturas à mão. A visão para o Mediterrâneo é sublime. Aqui viveram governantes. Shehrazade sentir-se-ia em casa…
A rua Didouche Mourad destaca-se pelos inúmeros restaurantes e cafés. É por aqui que passa boa parte da vida de Argel. Pitoresca, com árvores, comércio e edifícios belos e geralmente bem conservados.
O museu nacional Bardo é igualmente imprescindível. Um lugar recatado numa colina. Tem exibição de descobertas neolíticas, mas talvez lhe falte algo mais atual. Neste sedutor complexo árabe sobressaem os seus mosaicos multicolores. Seremos guiados, de improviso, por um (invariavelmente) simpático funcionário que exalta Linda de Suza. Não será o único argelino a surpreender-nos com o elogio à voz da emigração portuguesa em França.
A catedral do Sagrado Coração é um ícone arquitetónico do país. Magnífica, embora engolida pela voracidade urbanística. E com entrada que mais parece clandestina, por detrás de umas bombas de gasolina. Funcionalista e com um teto que mais assemelha um reator nuclear. A área de cerimónia religiosa foi inspirada em tenda berbere. De fora, complicado descobrir um angulo para boas fotos. Nessa demanda, encontraríamos um prédio do mestre Le Corbusier, mas sem a vista desejada. Finalmente, conseguimos uma pequena visita à igreja. Foi o único sítio, em toda a viagem, onde nos pediram dinheiro…
Se procura um oásis que o isole da confusão citadina, então o jardim d’Essai du Hamma é a opção certa, aos pés do imponente monumento aos mártires. Este jardim botânico foi criado em 1832 com o intuito de drenar um pântano e cultivar plantas e árvores. São 140 hectares de prazer e espécies surpreendentes em ambiente de pura serenidade. Tem um jardim francês e um outro inglês. Estético e cuidado. Aqui também podemos usufruir de artesanato e comida. Ideal para passear, meditar, relaxar…
Ao cimo, de teleférico, grandioso memorial aos mártires. Obra emblemática e símbolo do imenso orgulho argelino. Na sua base situa-se um museu sobre a revolução e o domínio francês. Indispensável. Do outro lado da enorme praça, o bairro em pedra do arquiteto francês Fernand Pouillon.
Argel oferece aos visitantes um contraste entre o austero e o sublime, bem como um vislumbre intrigante sobre o passado, presente e futuro da Argélia. Que já está em construção com a maior mesquita de África e um novo aeroporto internacional em Argel.
*** EXCERTO DO TRABALHO BORNFREEE/KITATO PUBLICADO NA REVISTA ‘FUGAS’, DO JORNAL PÚBLICO, A 20 DE MAIO DE 2017 ***
32 Comments
Primeira vez que vejo um post sobre a Argélia.
O país parece ter uma cultura muito interessante.
Uma pena que Casbah esteja fechado, porque a arquitetura parece incrível.
Juliana, o país é soberbo 🙂 Apenas um edifício está fechado, não a maravilhosa Casbah 🙂 Beijinho e boas viagens…
Gostei muito de conhecer Argel pelo seu post… Pra ser sincera acho que nunca tinha me deparado com um artigo sobre a Argélia, que também está pertinho de nós. Os contrastes me encantam.
Tão perto e… tão longe 🙂 As distâncias estão apenas na nossa mente 🙂 bjks e boas viagens…
Oi, Rui! Interessante você ter trazido este destino até nós com tanta particularidade. Pouco ou quase nada ouvimos sobre a Argélia no Brasil. Show de contrastes, história e cultura. Obrigada.
Gabi, em muito poucos lados se ouve falar da Argélia. O terrorismo ‘moderno’ começou por lá e o turismo “sumiu”. Está na hora de voltar, pois o país é surpreendentemente estimulante… bjks e boas viagens…
FABULOSO o teu relato Rui, adorei mesmo. Tenho de arranjar “forma” de visitar a Argélia.ponto.
Francisco, obrigado pela gentileza 🙂 Abraço e continuação de excelentes aventuras!! Avisa quando vieres à Invicta…
De fato, ouvimos muito pouco sobre destinos como Argélia. Mas adoro conhecer esses locais “menos famosos”. São locais como esse que transformam uma viagem. Ir além do comum, além do turístico. Bem interessante seu relato e o lugar também.
Obrigado, Anderson. E, acredita, subscrevo por completo a tua forma de pensar. Abraço e boas aventuras!
nunca tinha lido nada sobre a Argélia, eh um lugar totalmente desconhecido e novo para mim..espero ler mais posts!
Angela, acredito que o teu espírito aventureiro se iria dar muito bem na Argélia 😉
“A curiosidade é mesmo a melhor forma de conhecer qualquer destino”! É bem isso mesmo! Adorei!
Obrigado, Viajante Comum! Abraço e boas viagens!
A primeira vez que leio sobre a Argélia e que leitura gostosa! Fácil de acompanhar e parece que estou viajando com vocês. Parabéns!
Obrigado, Rayana e continuação de excelentes viagens 🙂
Gostei muito do Casbah. Acabei de vir de Marrocos e encontrei muitos por lá! Realmente a Argélia, aqui tão perto, é um local que merece ser explorado. Parabéns pelo artigo no Fugas!
Diana… acredita que vais sentir (boas) diferenças entre os países 😉 bjks e boas viagens…
Ah! Quanto ardor nesse texto! Explorações como essas que vão além das rachaduras, da (aparente) decadência são as melhores! Descobrir o passado “em tempo real” é experiência marcante! Adorei cada passo e cada generoso e curioso olhar compartilhado. Ana
Analuiza, sempre com um olhar “profundo” e interessado pelo Mundo… também gosto muito como os teus “olhos” o vêm… bjks e boas viagens..
Nunca havia lido sobre a Argélia e achei super interessante. Adorei as fotos em especial dos meninos jogando futebol.
Obrigado, Lulu. Quando penso em Argel, lembro-me de Havana (onde nunca estive). Acredito que tenham a mesma beleza decadente…
Rui, como sempre, sua forma de relatar os destinos é excelente. Minha visão sobre a Argélia era completamente deturpada. Por isso, acho fantástico quando alguém vai e traz uma outra visão do que é passado para nós (mesmo quando o que é passado é bem pouco…). Parabéns pelo texto!
Abraços,
Carolina
Carolina, assim fico sem palavras 🙂 Obrigado pela gentileza. Beijinho e ótimas aventuras…
Muito interessante seu post sobre Argélia. É a primeira vez que vejo um post sobre esse destino. Vc retratou o local com muita sutileza através das fotos. Gostei muito do post.
Obrigado, viajante móvel! Boas viagens!
Aí está um passeio para um país totalmente diferente, eu tenho vontade de conhecer todos penas que alguns a violência não devia a gente ir.
Christian, só tenho boas coisas a dizer da Argélia 🙂 Abraço e boas viagens!
Adorei seu texto! Primeira que vez que leio sobre este país. As fotos completam perfeitamente o quadro que pintaste com tuas palavras.
Ótimo, Simone 🙂 A bota bate com a ‘perdigota’ 🙂 Abraço e boas viagens!
Olá Rui, adorei o artigo sobre um país que sempre me despertou muita curiosidade, precisamente por sempre tão pouco falado, mas com uma história riquíssima. Sabe-me dizer qual o endereço da casa do airbnb que ficou ?
Obrigado e abraço.
Caro António Saraiva, acredite que vai superar as suas melhores expectativas. Estou em trânsito, agradeço que me contacte amanhã a partir do email que tem no site, pode ser? Obrigado e abraço.