Uma aldeia ‘edificada’ no mar em cenário paradisíaco na Tailândia.
O ‘long-tail boat’ vai rasgando as serenas águas do Parque Nacional Phang Nga e surge uma mudança natural de predisposição mental: estou na mais cativante natureza, entre verdes luxuriantes e soalheiros azuis, e vou a caminho de um lugar invulgar que há muito povoa a minha curiosidade, Koh Panyee.
Terá sido uma meia hora no que é o único acesso a esta singular povoação, conhecida por albergar os “Ciganos do Mar”. Do que se trata? Se o título ainda não vos elucidou, eu explico – trata-se de uma aldeia flutuante, sem terra, construída sobre estacas, e recentemente ‘colada’ a um imponente rochedo.
E é esse enorme megalítico que começo por vislumbrar ao longe, enquanto me sento na proa do barco que, aqui e acolá, vai cruzando com pequenas embarcações de pescadores na sua suave missão de deslizar sobre águas de serenidade.
A parte de trás deste lugarejo, o seu verdadeiro rosto e imagem de marca, é a primeira que vislumbro, mas será pela frente que ponho o pé em madeira firme. O crescimento do turismo mudou Panyee e a entrada faz-se pela nova e ampla área de restauração, uma zona bem polida e vistosa, para mim a menos interessante. Um mimo que, aliás, só tem uso no tempo seco, já que a estação das chuvas não tem fama de ser piedosa por estas latitudes.
Estes ‘templos’ da gastronomia mostram que este povo está em profunda transformação, abandonando, progressivamente, a tradicional pesca em favor do bem mais lucrativo – e menos duro – turismo. As redes ficam mais vezes esquecidas no barco e o artesanato local ganha metros em pequenas lojas nas principais ‘artérias’, sempre estreitas.
Não encontro gente com ar abastado, num povoado que é humilde e muito pitoresco. E, acima de tudo, GENUÍNO, que é o que mais amo em viagens.
Decido sair do trilho das barraquinhas de tudo e mais alguma coisa – onde deambula boa parte dos turistas que por aqui cirandam – e opto por percursos que rapidamente vejo não terem saída, que me obrigam a voltar atrás, ou equilibro-me por tábuas mal-amanhadas… que simplesmente acabam na extremidade. Cada metro quadrado conta e aqui não há espaço para arejar.
No coração de Panyee há uma inesperada clareira e uma casa que seria a que escolheria, caso aqui vivesse. Contemplo-a uma e outra vez, até a encaixar no visor do telemóvel. É quando alguém surge, na penumbra. Fico parado e aguardo – na verdade, faço figas para que saia, ajudando-me a um melhor registo, ao juntar-lhe o elemento humano – até que ela se mostra, sem se insinuar.
Confesso, fico siderado pela ‘tela perfeita’. E a minha vontade imediata é a de tirar fotos sucessivas, mas sinto que poderei estar a ‘roubar’ quando é muito melhor receber dado. É isso que me impele a baixar a relutante mão: a consciência.
Volto a levantar o braço, aponto para o meu apêndice tecnológico e depois para a senhora. A mensagem parece-me perfeitamente clara para ambos. Assim é, a sua cabeça assente. E ali fica, enquanto eu a tento fotografar, sem disfarçar ou refrear o indisfarçável entusiasmo.
Faltou-lhe o sorriso. Seria o suficiente para abrir a porta à minha ousadia de procurar uma forma – certamente rebuscada – de contornar a amálgama de barracas até encontrar a entrada para o seu lar…
Resignado, mas ciente de que tenho uma imagem que marcará esta viagem, seguirei caminho e falarei com o chefe da comunidade (acumula a liderança de mais três aglomerados piscatórios, escolhido com um conselho de anciãos) bem como com o seu imame.
Perceberei que o lixo é um problema crescente – os visitantes ainda não foram educados a levar de volta o que para aqui trazem – bem como a eletricidade, paga a um valor quatro vezes mais caro do que em terra firme. Dupla insularidade.
O espaço é outro problema, pois não há para onde crescer. Roubar área ao leito do rio não é opção que as autoridades tolerem. Surpresa das surpresas, embora já o soubesse de antemão, um campo de futebol que é extensão natural na parte de trás desta aldeia onde vivem umas 1600 pessoas.
Já tinha visto, no museu da FIFA, na Suíça, um documentário sobre estes rapazes que, sem terra, construíram um campo de futebol flutuante, sem qualquer proteção. A inspiração veio na altura do Mundial do México1986 quando as crianças construíram o campo com pedaços de madeira velha e de inúteis jangadas de pesca. A sua persistência não foi em vão, uma vez que são uma das melhores escolas de futebol do sul da Tailândia. Oportunamente escreverei sobre isso.
Há igualmente uma escola, neste caso para os mais jovens. Os graúdos devem estudar em terra. Se querem uma oportunidade de abandonar uma vida nem por isso fácil, há que investir em madrugar e deitar mais tarde.
“É uma prova de caráter, querer e determinação. Sei que é cansativo, mas é para o seu bem, e eles sabem disso. Se forem bem-sucedidos nesta missão, nada os assustará na vida”, diz-me o imame da aldeia, responsável para que Allah não seja esquecido neste paradisíaco fim de Mundo.
Na verdade, nada lhes é facilitado no seu quotidiano, nem as responsabilidades do islão: “Isso nunca. A religião, a sua fé, tem de ser uma prioridade!”.
O mercado, com produtos do continente, limita-se aos bens essenciais, pelo que não é, compreensivelmente, dos mais fotogénicos.
A esta hora já te deves estar a perguntar como nasce uma aldeia flutuante? Pois bem, esta foi construída por pescadores sobre palafitas. Curiosamente, toda esta população, atualmente de 360 famílias, deriva de somente duas de pescadores nómadas malaios, que aqui aportaram no final do século XVIII.
Nessa época, a lei passou a limitar a posse da terra, ficando unicamente ao alcance dos tailandeses. Posteriormente, as regras ‘amaciaram’ e, face ao crescimento do turismo no local, foi possível comprar terras na ilha que é o rochedo à qual Koh Panyee está incrustada. Assim foi possível edificar uma mesquita, que se destaca pelos seus topos em vivo amarelo, o principal ponto de encontro da comunidade, e avançar para um poço de água doce.
A terra não é, contudo, porto suficientemente amplo e seguro para toda esta gente, que bem sofre na altura das monções. Esta tela de éden transforma-se numa outra coisa. Confesso que cresceu em mim indomável vontade de regressar, quando o turismo não quer saber de Koh Panyee e a melancolia toma conta desta pintura.
*** BORNFREEE viajou a convite do Turismo da Tailândia em Portugal ***
20 Comments
Fantástico poder aprender e contemplar estes cenários através dos teus olhos!!
Acho que a maioria de nós teria muito a aprender com a resiliência e capacidade de sobrevivência deste povo 🙂 incrível.
Obrigada por partilhares e descreveres de forma tao bonita cada imagem ♡
Minha querida, OBRIGADO eu pelo teu olhar sempre atento e crítico 🙂 Acredito que um dia haverá uma viagem que partilhemos… Beijinho e boas aventuras…
Que maravilha! Vou partilhar!!!
❤️
A ‘gerência’ agradece, minha querida 🙂 Beijinho e boas leituras…
Que descoberta mais inusitada a ilha de Koh Panyee. Uma pena que muitos problemas causados pela ocupação humana ainda não foram solucionados. Vamos torcer para que a natureza seja de alguma forma preservada.
É isso mesmo, Fabíola, temos de encontrar um equilíbrio. Para que estes pequenos paraísos, ao nosso olhar, persistam…
Voltei da Tailandia a pouco tempo e não sabia deste lugar! Gostaria de ter conhecido, é bem interessante! Boa descoberta!
Diego, foi mesmo dos meus favoritos… fica para quando regressares a este fantástico país 😉
Que lindo quadro captaste com o telemóvel, o contraste de cores ficou perfeito. Não faz falta o sorriso, porque espelha a realidade. Muito curiosa em relação a essa escola de futebol. Que viagem inspiradora
Yap… uma história bem bonita, pena não ter tido tempo/oportunidade para a aprofundar como desejava.
Que lugar mais pitoresco essa ilha flutuante! Acho incrível conhecer a história do local, especialmente num lugar diferente como esse. Espero que o turismo não acabe canibalizando a história e a sobrevivência dos que ali vivem.
Somos dois a desejar o mesmo, Cintia. O turismo, sem regras e controlo, pode mesmo canibalizar um destino…
Fantástico, Rui!
Senti-me novamente lá! Estive aí em 2008, tinha apenas 13 anos, mas foi o lugar que mais me marcou na Tailândia! Genuíno, humilde e acolhedor!
Gostei muito de ler esta experiência!
Viva, Miguel! Excelente que deu para ‘voltares’ lá 🙂 E com 13… tens essas memórias ainda bem frescas? Abraço!
Adorei a matéria, um local que nunca tinha lido e achei inspirador e as fotos estão maravilhosa.
Obrigado, Deisy. Koh Panyee é mesmo um destino incrível… 🙂
Pretendemos conhecer a Tailândia ainda esse ano e esse lugar já está na lista, graças a ti. Achei lindo o cenário de Koh Panyee 🙂
Que bom, Marcela! Mas aguarda, pois tenho mais boas sugestões para vos dar :))) A próxima, Koh Mook 😉
Existem lugares por explorar que são um verdadeiro sonho!Este é mais um desses lugares.
Obrigado pela partilha
Nem mais, Vitor Martins. Saibamos preservá-los 🙂