Bukavu não figura em qualquer idílico roteiro turístico. Ao invés, esta zona remota e turbulenta da República Democrática do Congo integra mais rapidamente vários potenciais “top” dos lugares a NÃO VISITAR no planeta.
O país está em permanente guerra civil. Dizem os livros que esta durou entre 1996 e 2003, matando milhões, mas a verdade é que pouco mudou na agreste rotina do Congo. Sucedem-se os dias violentos. Persiste todo o tipo de crimes, perpetrados por criminosos de sangue, violadores, ladrões, traficantes de ouro, diamantes, pessoas… perante assumida incapacidade da ONU e dos seus capacetes azuis estacionados em Bukavu e Goma, a norte, também na fronteira com o Ruanda.
Segundo as agências da ONU mais de 60 mil mulheres foram estupradas durante a guerra civil na Serra Leoa (1991-2002), mais de 40 mil na Libéria (1989-2003), cerca de 60 mil na ex-Jugoslávia (1992-95), e pelo menos 200 mil na República Democrática do Congo durante os últimos 12 anos. Sintomático. Aqui, ser mulher tem tantos riscos como ser soldado ou guerrilheiro.
O antigo Zaire nunca teve uma transição política pacífica desde a sua independência da Bélgica, em 1960. Mobutu Sese Seko foi ditador até ser derrubado em 2001 pelo também militar e político Joseph Kabila, que partilha o vírus da vontade férrea de se perpetuar no poder.
A história desta terra diabolizada aconselha os potenciais visitantes a (grande) distanciamento. Principalmente longe das zonas ‘civilizadas’, onde o amor e respeito pela vida e dignidade humana são conceitos raramente respeitados. Entendo o que o bom-senso dita. Ainda assim, não me quero ficar pelas notícias tantas vezes cruas e descontextualizadas nem pelos meros livros de história, redigidos pela pena dos vencedores. Estou perto. Demasiado próximo. Quero ver. Perguntar. Tocar. Viver. Sentir. O apelo é bem mais forte do que qualquer receio. E é assim que nos dirigimos à fronteira.
A saída do Ruanda é rápida e pacífica. Cruzamos depois uma pequena ponte e subimos a estrada de terra batida rumo ao posto de entrada no Congo.
O primeiro vislumbre de ‘autoridade’ é imunda área de inspeção sanitária. Duas senhoras descalças, trajadas em farrapos à civil e certamente alheadas de um bom banho há demasiado tempo.
“Não têm o boletim de vacinas? Então não podem entrar. A menos que paguem 20 dólares cada”, atiram. Ignoramos. “Só vão um dia?”, insistem, tentando retirar-nos da nossa indiferença. “Então podem ser apenas dois”. Não perderemos tempo a retorquir. Ficam a falar sozinhas. Abandonamos a minúscula e mal-amanhada guarita miliar e avançamos.
Deparamo-nos agora com um barraco, maior, mas em igual estado calamitoso. Na hora de mostrar o passaporte, há dois funcionários a dormir: um no atendimento ao público – cidadãos humildes, rurais – e uma outra, com aspeto de desmazelada chefe de serviços, de boca aberta e cabeça inerte, recostada para trás.
A nossa incredulidade é surpreendida por bem vestidinho responsável que sai do decadente edifício e toma conta dos nossos documentos de identificação. Por sua indicação, seguimo-lo para o interior. Não tarda, fala connosco em inesperado tom superior. Assume postura autoritária. Agressiva. Mede-nos o pulso, certamente. Nós? Relaxados e nada submissos enquanto vamos preenchendo o amarrotado e pouco esmerado formulário de entrada no país. Insiste na atitude, em discurso em que a única coerência é certificar-nos do perigo e responsabilidade que era deixar-nos entrar na sua terra. “Isto está muito mau e sinto-me responsável por vós”, atira, com fingido ar preocupado.
Há calo de sobra a cruzar fronteiras difíceis, pelo que falha a sua tentativa de intimidação. Num par de minutos, entende que não vai lá sozinho. Sai da sala e regressa com um corpulento cúmplice, com abastado ar de fanfarrão. Terá um compincha na tentativa de extorsão. Mudaremos de sala, para uma mais recatada, sem testemunhas. Sem nos ouvir ou questionar, o seu amigo debita logo completo sermão sobre o facto de não termos visto. E assegura-nos que o colocamos em situação muito delicada.
“É impossível entrar nesta fronteira. Têm de voar para a capital. Nesta situação, contornando a lei, só mesmo pagando 300 dólares cada um para vos emitir o visto. É o preço oficial e nada podemos fazer”, sentencia. Obviamente, nem uma só palavra do que disse corresponde à verdade.
Serenos, respondemos que apenas queremos ir conhecer um pouco de Bukavu. Sentir o pulsar da cidade, almoçar e regressar. Desvalorizamos a forte vontade de passarmos a fronteira, embora insistamos nesse propósito.
“Queremos mesmo muito ajudar-vos, mas são as regras e os valores. E a minha responsabilidade é fazer cumprir a lei. Somos um país muito caro”, avisa-nos. Obviamente, não vamos na cantiga. Dispendiosa é a corrupção. A que nos vai ao bolso e a que destrói os valores e funcionamento de uma sociedade, o pilar de cada nação.
“Bom, por um só dia podem ser só 100 dólares. Mas, acreditem, estamos a colocar em risco o nosso posto de trabalho”, atalha, em tom de voz mais baixo, falsamente cúmplice. Como se nos estivesse a fazer um enorme favor e a pôr-se verdadeiramente a jeito… Tudo pela nobre missão de nos ajudar.
Sou o único que não domina o francês na perfeição, mas faço-o entender que não temos meios para aventura tão dispendiosa.
“Então quanto podem pagar?”, inquieta-se, perdendo os pruridos e falando, agora, abertamente. Digo-lhe que temos 100 dólares e uns trocos para comer. Não acredita e bate o pé nos 50 dólares para cada um. Se queremos mesmo avançar.
“Sem dinheiro para almoçar, não vamos a Bukavu. Não faz sentido. Proponho-lhe que venha à cidade e almoce connosco. Assim certifica-se que nada de mal faremos. E tudo o que nos sobrar, será vosso”, riposto, sabendo de antemão que dificilmente aceitará partilhar um almoço com o homem branco. Por tudo o que isso implica nestas problemáticas latitudes.
Voltam a falar em dialeto local. Aguardamos o veredicto. Subitamente, mudam o semblante. Impetuoso, o fanfarrão – não gosto mesmo nada dele – sai da sala. Segundos depois, o bem vestidinho, que recuperou a sua versão mais arrogante, diz-nos para o acompanharmos. Sai do casebre, estica o braço, aponta o dedo e indica-nos a porta de saída do país.
“Já podem dizer que estiveram no Congo”, desdenha. Fazendo questão de se assegurar de que nos vamos mesmo embora. “Tem um resto de boa vida”, respondo-lhe, com indecifrável sorriso.
Entrar novamente no Ruanda, sem ter registo da saída do Congo, é exercício que confunde o agente alfandegário no regresso à fronteira que tínhamos abandonado nem há uma hora. Insiste que não é possível. Veta-nos à terra de ninguém.
Confesso: a nossa paciência já não está ao nível desejável. E corromper não é ‘qualidade’ que nos corra nas veias. Explicação serena, mas assertiva fará com que o caso não demore a ter solução. Livres, de novo. O Burundi espera-nos…
53 Comments
Caramba, que relato interessante!!! Realmente é muito triste ver a realidade em que esse povo vive.
É isso mesmo, Viviane. Há experiências que nos “situam” no Mundo… bjks e boas viagens…
Alguns lugares são tão lindos, mas a questão política nos impede de chegar perto. Tantos lugares sendo destruídos, comunidades dizimadas…
Uma pena a corrupção “esmagar” uma parte importante do planeta…
Meu Deus, que aventura!! Quero saber mais, vou ler toda a saga! Já tinha ideia de que a galera de imigração por aí é corrupta, mas a esse ponto… Muito legal, parabéns!!
Obrigado, Franciso Piazenski! Abraço e boas viagens! 🙂
Que pena um país viver em guerra por tanto anos, deve ter tantos lugares lindo para conhecer só que a guerra atrapalha o turismo.
É isso tudo, Christian Gutierrez. PAZ! 🙂
Tenho certeza que depois de experiências como essa você assume um novo olhar diante do mundo é das pessoas, não é mesmo?!
Não podias estar mais certo, Viajante Comum. Mais do que ouvir, é preciro IR, VIVER! Abraço!
Belo texto, mas uma tristeza a realidade deste lugar.
Sim, Alessandra, o Mundo é isso mesmo: Tem lado A, B, C… beijinho e boas viagens.
Arrebatador o seu texto, parabéns! Muitas vezes a realidade dos lugares é bem diferente do que a gente imagina né? Outro dia vi uma reportagem sobre Manila, nas Filipinas e fiquei horrorizado.
Abs
Amilton, quem escreve sobre viagens tem de contar sobre tudo… não é apenas refresco e vida ao sul 🙂 Abraço e boas viagens!
Nossa, que aventura! Muita coragem e determinação em não se submeter à arrogância e à corrupção. Dá prazer em ler um texto tão bem escrito! Parabéns!
Obrigado, Tina Wells 🙂 Devemos fazer sempre o que achamos o mais correto. E um exemplo. Beijinho e boas viagens…
WOW, que relato! É muito fora de tudo o que estamos acostumados a ver em viagens a outros lugares… É uma realidade muito diferente. Que bom que seguiu firme contra a corrupção. Você poderia dizer ˜”São só 100 dólares”, mas seria mais um pego pela corrupção e contribuindo para que o país seguisse nessa triste situação. Belo relato. Muito bom.
Obrigado pelas palavras, Bruno Miguel. Abraço e boas viagens!
Caramba, até arrepiou….belo relato.
🙂 Beijinho e boas viagens, Andrea.
Que interessante, Rui. Pensei em conhecer o DR Congo quando estive no leste africando, queríamos ver o vulcão, mas o visto era realmente muuuuito caro.
Adorei o seu relato, vou continuar acompanhando a saga! Ah, não deixe de conhecer o Malawi 🙂
Fernanda, ainda não fui ao Malawi… AINDA. Vou pesquisar um pouco e, precisando, já sei a quem perguntar 😉 Beijinho e boas viagens…
Poxa não sei nem o que falar.
Primeiro eu gostaria de parabeniza-lo pela coragem de ir, ou pelo menos tentar conhecer uma realidade como essa. Eu pessoalmente não tenho a mínima vontade de conhecer essa realidade, muito menos ter que lidar com a arrogância e extorsão desses agentes corruptos. Lendo seu relato me convenço mais e mais que a ONU infelizmente não serve para absolutamente nada a não ser servir para meia dúzia de membros e seus interesses escusos.
Oscar, o que a ONU faz e deveria fazer… daria pano para muitas mangas. Frequentemente, penso que apenas serve para garantir que o status-quo permanence. Inalterável. Abraço e obrigado pelo comentário.
Nossa, fiquei um pouco e choque e o seu texto me fez sentir que estava lá com você. O nosso mundo preciso de tanto pra ser um mundo um pouquinho melhor, tão triste.
Obrigado, Viagem da Vez. Abraços…
Muito triste ver que uma parte grande do mundo vive numa situação tão vulnerável. Ninguém deveria ter que passar por isso.
Espero que no futuro a humanidade evolua a ponto de não ter mais esses conflitos.
Obrigado por compartilhar suas experiências conosco.
Obrigado EU pelas palavras, Matheus. Abraço e boas viagens!
É muito triste ver tanta miséria e corrupção, onde há tanta gente precisando de ajuda e outros tentando se dar bem em cima dos outros. Fico muito feliz que existam pessoas como você no mundo, que não alimentam esses criminosos.
Obrigado pelas palavras, Naná 🙂 Beijinho e boas viagens…
Taí um post que não se lê todo dia! A maioria evita esses países não só pela insegurança, mas por essa praga que é a corrupção.
Marcia, é preciso ir para sentir, na pele, como são as coisas. Eu aprecio este tipo de dificuldades, mas respeito quem opte por realidades mais desafiantes para outros sentidos. Beijinho e boas viagens…
Puxa, que triste. Coincidentemente começou a tocar “Imagine” enquanto lia seu texto, e fiquei aqui pensando: imagina se todas as pessoas pudessem viver em paz? Vamos sonhando por enquanto 🙁
Enquanto houver esperança, alimentemos o sonho, Gisele 🙂 Beijinho e boas viagens…
Que grande aventura, é mesmo incrivel a coragem que tiveste. E isto é que é viajar, ver o mundo, o bom e o mau. Adorei o texto e a forma como escreves. Parabéns.
Obrigado, Catarina 🙂 Beijinhos e continuação de fantásticas viagens…
Excelente relato de viagem Rui. Para começar gostei muito do enquadramento histórico que fizeste e fazer ver que nós, no país onde vivemos estamos no paraíso, por vezes sem o saber LOL. Infelizmente são países assolados pela corrupção, mas tu como viajante muito experiente sabes contornar todas essas situações. Continua o bom trabalho.
Pedro, obrigado e grande abraço! Um dia combinamos um almocinho 🙂 Boas viagens!
Oi Rui,
Às vezes a gente não tem noção do que acontece na “vida real” não é mesmo!?
Parabéns pelo artigo. Acho que este é o verdadeiro papel do viajante, mostrar para o mundo o que ele não quer ver.
Abs, Marlise
Marlise, muito obrigado pelo teu comentário 🙂 beijinhos e boas viagens…
E a corrupção corre solta pelo mundo. Em países mais pobres, em maior grau. Seria histórico? Creio que sim. Vide o Brasil… e as guerras civis na África? Seria a repartição feita pelos exploradores ( França, Inglaterra, Holanda, Portugal etc) que não respeitaram os aspectos étnicos das tribos? Creio que sim … pois é, a corrupção é problema enraizado e parece que está no sangue, infelizmente.
Belíssimo texto!
Infelizmente, subscrevo, VaneZa. Beijinho e boas leituras…
oi Rui… eu entendo sua “curiosidade” em querer ver de perto e por seus próprios olhos as realidades mundo afora, mesmo as mais tristes e assustadoras, sem filtros dos órgãos de imprensa, porque eu mesma a tenho.
Contudo, não tenho a coragem necessária para tal empreitada, como você teve. Entre muitos outros motivos além da necessária coragem, talvez um deles esteja no fato de viver em um país com alto grau de corrupção e violência (embora não estejamos em guerra civil. Já convivo com coisas ruins e feias. Para ver a existência triste de muitas pessoas, basta virar uma esquina em minha própria cidade.
Ainda assim, “desgraças” humana são incomparáveis e sei que tem países que estão em situação muito, muito pior. Sem esperança. Sem solução. Sem saída. Dói na alma.
Obrigada por compartilhar sua experiência de forma tão real!
Analuiza, a minha ideia é ver ‘tudo’… e sem filtro. Coisas boas e outras nem tanto. Voltei há dois dias (exatos) da Islândia e, felizmente, só vou ter boas coisas para relatar. Continuação de boas viagens e felicidades para o espiandopelomundo 🙂
Muito triste ver a situação destas pessoas. São lugares esquecidos pela humanidade.
Que complicado isso! Corrupção enfeia qualquer lugar =/ Mas é uma realidade que não podemos maquiar, temos que saber sim da realidade por lá…
É isso, Camila Lisboa. Beijinhos…
Apesar de ser um texto que retrata uma realidade muito dura das pessoas que vivem nesse lugar, tive que rir em um trecho… Não me leve a mal, mas amei a solução “Proponho-lhe que venha à cidade e almoce conosco. Assim certifica-se que nada de mal faremos. E tudo o que nos sobrar será vosso”. Gente, é um absurdo, né? Muito triste tudo isso…
Abraços,
Carolina.
:)))) Há que usar o humor nas situações complicadas. Beijinho e boas viagens…
Nossa, muito interessante seu relato. Realmente algumas cidades nos fazem pensar…
Obrigado por compartilhar
Que triste pensar que neste exato momento existem países passando por uma realidade tão cruel! Seu relato nos transporta para dentro de tudo que você viveu por lá. Parabéns pelo trabalho!
um abraço
É isso mesmo, Flávio. Obrigado pela leitura e comentário. Abraço!
Muito interessante o seu artigo e triste por ver um lugar com uma situação tão caótica e de corrupção. Belo relato da vida como ela é!