Já se imaginou visitar um país… que ninguém reconhece?
A paisagem parece como que a embrutecer. E as cores a desfalecer. Reduzir a velocidade. Passar o primeiro controlo. O segundo. E parar ao terceiro. “Siga-me”, dizem-me olhos crus, em tom austero.
Estamos num lugar bizarro, estanho. Uma fronteira que não sei se o chega a ser. Moldávia e Transnístria, um território que teima em ser independente, mas que ninguém reconhece. Porém, persiste – e consegue viver – no seu micromundo. Com um estilo de vida dúbio que escapa ao controlo internacional.

Em russo, que sabe eu não compreender, dá-me indicações do que devo fazer. Ouço-o com expressão inamovível. No fim, serenamente, atiro-lhe um sereno “Do you speak english?”. Ele é previsível na atitude. Eu ensaio passos de dança que o surpreendem.
A fronteira está pejada de soldados russos. É o contingente que ajuda a manter esta teimosia, numa região fértil em conflitos ao longo da história. A independência, unilateral, foi decretada em 1990, com a ajuda de contingente russo. Que aqui permanece. A União Soviética desagregou-se e a Moldávia, uma das suas ex-repúblicas, tornou-se independente. Os fiéis a Moscovo protegeram os seus interesses do outro lado do rio Dniestre (Transnístria – para lá do Dniestre). E o amigo soviético aqui continua presente, ajudando a manter esta inexistência que ninguém reconhece internacionalmente como país. Nem a nação liderada por Vladimir Putin o assume.

O agente dá-me tanta papelada que me baralha. É taxa de entrada. É um novo seguro do carro. É outro pagamento que continuo sem entender muito bem para o que é. E um pequeno assalto no câmbio que sou obrigado a fazer para pagar na moeda local: o rublo da Transnístria. Na verdade, é um câmbio que nada tem a ver com a realidade. Ninguém o definiu internacionalmente e ninguém o controla. Fora do país, vale zero. Nada.
Quer saber quem somos e o que vamos fazer a Tiraspol, a pretensa ‘capital’. Digo-lhe que somos três professores em viagem de trabalho a Chisinau e que aproveitamos dois dias de folga para conhecer melhor a região. A desnecessária verdade – jornalista, profissão que sou obrigado a omitir em muitos lugares do planeta – provavelmente traria sarilhos adicionais e não me permitiria atingir o objetivo.
Volto ao carro para pegar em documentos, enquanto Sandra e Daniel me esperam. Estou demorado. Perguntam-me se está tudo bem. Aceno afirmativamente. Prometo voltar em breve. Afinal, vamos estar no ‘país’ menos de 10 horas, o que, alegadamente, simplifica imenso a questão. “É menos papelada”, tranquiliza-me o meu interlocutor. Imagino se assim não fosse…
Agora o tom do agente é mais suave. Até colaborativo. Supostamente ajuda. Recolhe o dinheiro e troca umas palavras em russo com os funcionários alfandegários. O troco em cada um dos guichets em que entrego papelada não vem. Não é muito, mas insisto em recebê-lo. Digo-lhe isso. Percebo, pelo tom da conversa entre os intervenientes, que não devo esperar recebê-lo. Após alguma insistência, acabo por ser bem-sucedido num lado. Não no outro. Em inglês, digo três vezes à agente que tenho ainda a receber “XX”, mas esta, que anteriormente já tinha balbuciado umas palavras em perfeita língua de Shakespeare, agora age como se não entendesse uma única palavra. Ela percebe que eu estou ciente da situação. Evita cruzar o olhar com o meu.

Quando tudo está pronto, peço o carimbo do ‘país’. “Vai ficar bem no passaporte”, sorrio. O ‘tradutor’ diz que tem de ser outro agente. Mais tarde, quando apresento, pela última vez, os documentos, insisto no pedido. Dizem-me, algo embaraçados, que não há. “Então como é que um país não tem carimbo?? Ou o válido é o da Moldávia?”, provoco, apontando para o pequeno retângulo impresso no passaporte. Fico sem resposta. Atalho caminho.
Fora das instalações-contentor, novas perguntas. Desta vez alguém que traduz as questões de mais um mau-feitio. Na verdade, nunca entendi esta postura, tão típica em alguns países de Leste inspirados pela Rússia.

Entretanto, no meio desta insanidade, um corredor em marcha triunfal sem que ninguém pestaneje à sua passagem. Como se fosse invisível. Reencontro-o em Tiraspol. É turista…
Dois carros com matrícula da Moldávia desistem à porta do primeiro controlo. Lentamente, dão meia-volta e desaparecem no horizonte. Os ‘compatriotas’ da Transnístria avançam sem problemas de maior, mas outras ‘placas’ motivam um insistente e cuidado farejar das autoridades.
O Conselho da Europa analisa a questão da Transnístria como um ‘conflito congelado’. Alheia ao tráfico de pessoas, armas e droga, com a proteção divina de militares russos. Kolbasna deve ser um dos maiores arsenais de armamento convencional do planeta. Ninguém liga. Mesmo que não haja qualquer controlo neste negócio de morte.
Os nativos chamam ao país República Moldava da Pridnestróvia (Pridnestróvskaia Moldávskaia Respúblika), não aceitando o termo ‘Transnístria’ por o considerarem… romeno.
Vou entrar em território que emite o seu próprio dinheiro, tem o seu parlamento, polícia e exército (russo). O russo sé a língua oficial. Igor Smirnov foi quem deu a cara pela independência. Ele e a família controlam o país. A marca Sheriff está por todo o lado. Como facilmente comprovaremos. Gasolina. Supermercados. Desporto. Açambarcou todos os negócios privados. Tem o monopólio em várias áreas e mantém o apoio presidencial. Um dos filhos de Smirnov é quem controla a empresa. Em surdina que todos conhecem.
Finalmente, autorizados a entrar em Pridnestróvia. É hora de explorar a exótica Transnístria…
30 Comments
Belo mergulho!
Que texto envolvente!
Impossível lê-lo e não ficar torcendo para que tudo de certo… E ainda bem que deu (apesar do troco)… hahaha
Abraço
Excelente texto
Nossa, que aventura! um pouco tenso, mas finalmente tudo se resolveu!
Bem… isto é que é sair do “beaten track”. Transnítria?? Quem diria que era uma país… Excelente texto. Envolve quem o lê, do inicio ao fim. Boas viagens!
Devo confessar que nunca tinha ouvido falar de Transnítria, Moldávia sim. Quando lia o texto veio-me à cabeça aquele videoclip do elton John “Nikita” ?. Acho que é preciso coragem para enfrentar tanta papelada.
Sua experiência daria um ótimo filme. Nunca tinha ouvido falar da Transnítria e agora já estou super curiosa para saber mais. Parabéns pelo excelente relato.
Bem, mas é que NUNCA tinha ouvido falar neste local. Que aventura entrar no “país”! Agora fiquei super curiosa de ver mais imagens sobre este território. Fico à espera do próximo post. 😉
Bem, que grande aventura que nos contas Rui! De facto, só “países” tão fechados como este é que permitem viver algumas situações como as que contaste! Parabéns pelo artigo e manda mais!
Amei essa aventura. Otimo texto e mal vejo a hora de ler como continua. Nunca havia escutado falar desse lugar. E uma loucura pensar que eles tem moeda propria e nao serve para nada fora de seu “pais”. Demais!
Me sinto um pouco ignorante por não saber que um “estado” independente tão grande assim existia. Seus relatos são fantásticos e nos transporta ao momento narrado! Parabéns
Ana Flores, obrigado pela simpatia das palavras 🙂 Beijinho e boas viagens…
Nunca tinha ouvido falar deste país, território, ou sei lá o quê, mas dá medo de enfrentar uma fronteira como essa!
Jair, um desafio de cada vez 🙂 A adrenalina é boa para nos fazer sentir bem vivos 🙂 Grande abraço!
Texto incrível e gostoso de ler. Que aventura. Não vejo a hora de saber como foi depois que entrou nesse “país” doido! Conta pragente :))
Victoria, um Mundo bem diferente em muitas coisas… mas onde o capitalismo selvagem também já se faz notar. Contra-senso face ao regime comunista russo que impera…
Essa fronteira da medo mesmo heim. Fico feliz que no fim as coisas dera certo. Parabéns pelo texto, você escreve muito bem (fiquei presa no texto, querendo saber o final).
Angela, muito obrigado pela simpatia das palavras. Quando escrevemos com alma fica tudo mais fácil 🙂 Beijinho e boas viagens…
Muito bacana o seu texto, tanto pela forma como escreve quanto pelo enredo. Comecei sem saber de nada e saí mais culta. Obrigada!
Obrigado, Ana Morize. Um bom estímulo para continuar este caminho. Beijinho e boas aventuras…
Que loucura esses territórios não reconhecidos. Estive em Karabakh e foi um choque também. Essa mistura insana de orgulho, nacionalismo e ao mesmo tempo uma batalha eterna por serem reconhecidos (e muitas vezes simplesmente conhecidos, já que a maioria dessas regiões passa batida para muita gente). São áreas com tanta história e cultura, nessas situações “congeladas”.. complicado.
Fernanda, também estive em Nagorno-Karabakh. Mais um não-país com as suas particularidades específicas. E “gelei” em Agdam e quando caminhei sobre a sua terrível história. Beijinho e boas viagens…
Nossa, que interessante. Nunca tinha ouvido falar desse lugar. Viajar pela Rússia deve ser uma experiência ímpar.
Anna Luiza, é Moldávia… controlada por separatistas russos, em maioria na população. Long story…
Os seus textos são sempre muito interessantes! Dessa vez foi uma aventura e tanto, mas que bom que deu tudo certo.
Obrigado pela gentileza, Viviane. Beijinho grande e boas viagens…
Acho que ficaria um pouco tenso nessa fronteira. Mas que bom que você levou tudo na boa.
Leo… quando levamos tudo na boa… fica bem mais fácil 🙂 Boas viagens!!
Lindo texto, me prendeu do início ao fim. Só que fiquei meio assustado por ser um “país” ainda em formação. Vocês são muito corajosos, eu precisaria beber litros de coragem para me aventurar assim. Excelente post! Obrigado por compartilhar.
Cleber… bebe à vontade :))) Acredita que custa bem menos do que imaginas :))) Grande abraço!