Quando não há barreiras para a cumplicidade…
O convite é tão surpreendente quanto estimulante. A minha inesperada interlocutora tem apenas 10 anos. Surge do nada e aborda-me carregando uma década de determinação e comprometimento com um objetivo.
Como que amigos desde sempre, metemo-nos na primeira piscina que encontrámos. Ali a dois pés. Quando o mar que rodeia Zanzibar recua, até ao limite do horizonte, deixa as praias desta ilha da Tanzânia transformadas em vasto complexo de pequenas poças de água.
O seu olhar é firme e doce. O sorriso, que impera nas suas feições, uma vasta savana. As mãos já não são totalmente as de criança. Não terá os luxos de uma ocidental. Contudo, é toda ávida de conhecimento. Foquemo-nos no essencial: a lição começa.
“Tens medo da água? Mostra-me o que sabes fazer”, desafio.
Sem hesitar, mergulha. Mal espero pelo meu sinal de comando e logo se move, atabalhoadamente. Ergue-se instantes depois como se estivesse uma vida em apneia. Limpa a água da vivacidade do olhar e sorri-me. Na verdade, derrete-me. “Fiz bem?”.
Sento-me a peço-lhe que se coloque a meu lado. Explico-lhe as regras fundamentais na atitude para saber nadar, bem como os movimentos de braços e de pés. Repetimos uma e outra vez. Até ser hora de os tentar colocar em prática.
Seguro-lhe no peito e peço-lhe que exercite. Naturalmente, presenteia-me com movimentos confusos e desconexos. Não faz mal. Repetimos. A lição e a prática. Uma e outra vez. Afinal, sobra-me tempo. E vontade de estar aqui a fazer precisamente isto.
Digo-lhe que boiar é das coisas que mais prazer me dá. Também quer saber como se faz. A metodologia do improvisado professor é a mesma. A pupila não gosta de água nos ouvidos e teme que entre, sem avisar, na boca, narinas e olhos. Peço-lhe que confie. Assente com a cabeça e esgar de lábios. Seguro-lhe a cabeça e tal não acontecerá. Confia. Cegamente. E, olhos fechados, um sorriso de felicidade pela sensação. Digo-lhe para treinar diariamente e pedir ajuda aos irmãos adultos, que acompanham tudo a dois passos de distância.
Um ano mais velha, a irmã parece mais adiantada na aprendizagem. Também está vestida. E de véu. É mais tímida, contudo sobra-lhe vontade de se juntar ao “muzungo” (homem branco). Realmente, acho que essa suposta barreira de tom de pele não chega a existir.
Quero registar o momento em imagem. E logo posam a meu lado. Ofereço-lhes uma mão. Embrulham-ma com ambas. Com cumplicidade e encostar de cabeça ao meu ombro. Não sei que méritos terei para merecer esta sensação etérea que me invade o peito…
Perdida a noção do tempo. Chegará o momento das despedidas. Custam, porém tenho de voltar à ‘estrada’. Que volta a complicar 50 metros depois. Em novo ‘acidente’ que me detém. Meia dúzia de garotos com máscaras de mergulho em brincadeiras típicas da idade. E entusiasmado treino em correrias e ousados exercícios de karaté. Surreal. Aponto o telemóvel para o registo e imediatamente percebo que vai acabar mal. Nem terei oportunidade de abrir a boca para o alerta e uma projeção termina de forma dolorosa para ambos os protagonistas. Pior tratado o jovem que leva pontapé nas costelas e abre metade do lábio inferior. Mais resistente à dor o seu oponente, que mal se consegue levantar.
Alda abraça-o. Lava-lhe o rosto com água de mar e enxuga-lhe as lágrimas. Dá-lhe todo o carinho de que precisa. Em boa verdade, este choro soa a isso mesmo: um pedido de conforto. Estas crianças são felizes com nada… no entanto a sua vida está longe de fácil. Boa parte da população da ilha é pobre e estas crianças vivem em condições económicas e sociais bem deficitárias.
As fotos do telemóvel ajudam a serenar a dor. E a trazer sorrisos de volta. Até que a dor é esquecida e todos parecem empenhados em mostrar habilidades e a posar para a foto de forma bem artística. Riem, aumentam a imagem no smartphone e pedem mais.
As extrovertidas brincadeiras são, subitamente, interrompidas pela minha primeira amiguinha.
“Olha, acho que já sei boiar”, atira, procurando admiração e surpresa no meu rosto. Deita-se de costas, fecha o olhar e enche as bochechas de ar. “Viste?”, pergunta, entusiasmada, instantes depois e antes mesmo que tenha tempo de lhe poder exibir o meu espanto.
Peço-lhe que repita. Quero fazer o teste. Como cumpridora militar, não tarda e está novamente a flutuar. Passarei a mão sob o seu corpo e, comprovadamente, não há parte que toque no fundo da poça.
“Estou muito orgulhoso de ti. Em breve vais saber nadar em todos os estilos. És uma supermulher, sabias? Dedica-te a nadar. A sorrir, estudar, brincar e a ser feliz. Sem esquecer de aprender bem o inglês, para podemos compreender-nos cada vez melhor”, insisto.
Estas ‘distrações’ atrasam-me de compromissos com o resto do grupo Bornfreee e regresso ao hotel. Estou a passos da piscina que começa logo no fim da praia quando o meu olhar se volta, uma derradeira vez, para a palete de azuis do mar, que continua distante. Não espero ver aquele belo ponto verde correr em minha direção. A minha amiguinha, novamente, no meu caminho. Chegará cansada, a arfar poderosamente e língua de fora. Baixa-se por instantes, recupera o fôlego e, de pupilas brilhantes e dilatadas, olha-me nos olhos: “Quero somente agradecer-te por me teres ensinado a nadar”…
83 Comments
Muito bom! Parabéns pelo texto e fotografias!
Faltaste lá tu, companheiro! Grande abraço!!
Soltei umas lágrimas ao ler-te… é aqui que marcas… quando tu nao vais so buscar mas tambem levas e deixas o que de melhor ha em ti…
Obrigado, minha querida 🙂 Vindo de ti, as palavras têm sabor especial…
Inspirador com sempre, Bornfree:)
Obrigado, Ana 🙂 Beijinho e continua por aí…
É maravilhoso este texto..😍
O melhor de te ler, é conhecer sempre um pouco mais de ti. Em cada texto consegues surpreender-me com quem és.
Qualquer pessoa poderia ter passado por esta experiência e não a teria vivido com a magia com que a viveste. Teria sido só um episódio giro.
Contigo é mágico! Especial! Valorizas cada pedacinho de quem se cruza contigo. A gratidão dessa criança por ter tido acesso a ti, é a mesma que tu tens em relação a ela. És tão sortudo quanto ela!
Obrigada por me mostrares sempre que é tão fácil ser feliz! Basta olhar para onde não esperava… ❤️
Adorei 😘
Luísa, assim fico MESMO sem palavras… obrigado pelo carinho 🙂
Mas que bela história, Rui, parabéns pelo relato. Grande abraço 🙂
Obrigado,Filipe. Foi das mais simples, contudo das que mais me marcaram neste périplo africano… grande abraço!
Está muito bom, incrível momento e relato!
Obrigado, Marília 🙂 Vindo de ti, é para valorizar ainda mais… bjkssss…
Maravilhoso relato de mais um momento que de certeza marcou o coração de todos os intervenientes.. é mesmo nestas situações que qualquer viagem se torna verdadeiramente única e especial ♡
Obrigado, Maria, pela simpatia das palavras 🙂 Concordo em absoluto com elas… Temos de combinar algo para partilhar… bjkss…
Mas que maravilha de história!
Pude sentir junto contigo a alegria contagiante e a simplicidade dessas crianças.
Obrigada por compartilhar!
Obrigado pelo feedback, Helen 🙂 Beijinho e boas viagens…
Mais uma bela história que compartilha conosco. Obrigada!!!Sempre emocionante.
Obrigado pelo carinho, Lulu 🙂 Beijinho e boas viagens…
Olá Rui! Que texto mais lindo. Adorei as fotos com as crianças, tudo parece tão mais simples! Parabéns pelo post! 😉
Obrigado pelas palavras, Fabio. NADA como a simplicidade e genuinidade das crianças… Abraço e boas viagens!
Que lindo rui! Relato maravilhoso, que delícia viajar e viver essa experiência! <3 adorei te ler, como sempre.
Obrigado pelas palavras, Gabriela. Esta história não podia deixar meramente na gaveta das memórias… Beijinho e boas viagens…
Que relato bonito! Com certeza uma história para guardar para sempre. Adorei as fotos e os sorrisos, estampam a alegria desse momento.
Mariana, sem dúvida momentos bem especiais… que decidi imortalizar também em texto 🙂 Beijinho e boas viagens…
Que linda história!
Melhor coisa é viajar e ter esses momentos que a gente leva pra sempre. Muito bom!
Obrigado, Patrícia. Que sirva para inspirar outros à partilha e maior proximidade aos “locais”. Boas viagens…
Nossa, que lindo! Amo conhecer essas histórias. Elas fazem parte da nossa viagem, né?
Sim, Fabiana. São o mais importante da viagem. As minhas favoritas…
Muito tocante o seu relato e a maneira como você escreve, é tão raro encontrar estas experiencias por ai.
Michelle, importante é que estejamos predispostos para esse intercâmbio… beijinho e boas viagens 🙂
Que maravilha, Rui! Adorei. São estas histórias que fazem de nós viajantes e nos enriquecem todos os dias. Parabéns pelas palavras. bjinhos
Carla, acredito que, em viagem, funcionas de forma muito similar. Eu não troco estas experiências por nada… são elas que me dão tudo em viagem… bjks e boas aventuras…
Este texto diz tanto sobre o viajante maravilhoso que és. Não falo do contador de histórias, porque nesse ponto já tens provas dadas já muito tempo.
Abraço, um lindo domingo (por Braga?)
Ruthia, sem palavras 🙂 Poderei dizer o mesmo de ti… e dá-se a curiosidade (ainda) nem nos conhecermos 🙂 Temos de resolver isso. Sim, estive estes 3 dias por Braga no meet internacional que organizei com 2 amigos. Beijinho e boas viagens…
Rui como sempre suas histórias são cheias de encanto. Adoro acompanhar suas viagens
Obrigado, querida Ana Carolina 🙂 Bom saber do acompanhamento desse lado… Beijinho e boas viagens…
Que texto lindo! Nao conhecia o seu blog e fiquei encantada, com o tom das palavras, as fotos, eu pude sentir a energia boa que passa!!!!!! Ja favoritei!
Seja, então, bem-vinda, Nadine 🙂 Obrigado pela gentileza das palavras… e continue deste lado 🙂 beijinho e boas viagens…
Nadine, muito obrigado pelas palavras 🙂 Espero que continue por aí… beijinho e excelentes viagens!
Incrível! Uma experiência maravilhosa esta com as crianças locais! As aulas de natação e o Karatê são coisas pra eternizar na memória.
Sim, Itamar, experiências que não serão apagadas da memória… 🙂 Abraço e boas viagens!
Itamar, NADA se compara a uma genuína e profunda partilha com os locais… abraço e boas viagens!
ahh que experiência legal, ensinar a galera a boiar e a nadar, crianças q tem a curiosidade e a vontade de aprender com pessoas que nem conhecem..adorei a foto com as meninas e a cabeça no ombro
Angela, foi das experiências mais enriquecedoras e intimas que tive em viagem…
Lindo texto! Deve ter sido uma experiência emocionante. Amor ao próximo é o que há de mais bonito nessa vida. Doar tempo é também uma forma de amar. Tenho certeza que essa experiência vai ficar pra sempre na memória de todos, inclusive na minha.
Estamos plenamente de acordo, Tharsila 🙂 Obrigado pelo interesse e pelas palavras. Beijinho e boas viagens…
Espectacular texto, com a subtileza de que com pouco, muito se pode fazer para dar um sorriso e melhorar todos de uma ou outra forma. Uma experiência que além de ter sido animada e proveitosa, trouxe maravilhas que poucos imaginam sequer existir. Parabéns parceiro, pela tua história bonita e de acompanhar com o mais pequeno detalhe.
Obrigado, Bernardino, pelas palavras… Que este exemplo te inspire a um dia explorares o Mundo 🙂 Abraço!
Acordo e leio esta tua aventura e só me apetece partir! Os teus momentos com as gentes que conheces são fascinantes e este é mais um daqueles que fica na memória. Tu nem precisarias do telemóvel para não esquecer, mas ainda bem que o tinhas para poderes partilhar connosco essas imagens e histórias de Zanzibar. Fantástico!
Jorge Duarte Galvão, obrigado pelas palavras. Vindo de alguém com o teu ‘valor’ em viagem, tem significado acrescido 🙂 Abraço e boas viagens!
“És uma supermulher, sabias? Dedica-te a nadar. A sorrir, estudar, brincar e a ser feliz.” Que maravilha Rui. Ler os teus textos e ver as tuas fotos é sempre um prazer. 🙂
Obrigado, Maria João 🙂 Há imensas super-mulheres neste Mundo que precisam de saber que o são… Beijinho e boas viagens…
Rui sempre inspirador, de textos maravilhosos, experiências fabulosas e fotografias que são um espanto! Parabéns pelas viagens e por tão bem conseguires transmitir-nos os maiores detalhes. Felicidades
Patrícia, agradeço-te, mesmo, a simpatia das palavras. É bom saber que há muita gente que tem empatia por este estilo de viajar e partilhar… beijinho e boas viagens…
Que experiência! Que história! Belo relato…desses para guardar na memória 🙂
Sonia, acredita que ficará na minha. Um momento simples, mas com imenso significado para mim. Boas viagens… 🙂
Maravilhoso, o que África tem a ensinar ao mundo é a beleza da simplicidade!
A vida é isso mesmo, Luís. No Mundo ocidental é que parece que gostamos de complicar..
Rui, seus relatos são sempre belos e impactantes. E este não fugiu à regra. Eis um tipo de experiência enriquecedor, ladeado por uma paisagem maravilhosa. Abraços e parabéns pelo post!
Obrigado, Fábio. Bafejado pela sorte de uma menina me ter pedido ajuda. Posteriormente, fiquei a saber que há um programa na ilha específico para ensinar as mulheres/meninas a nadar… inclusivamente, um projeto fotográfico premiado pela National Geographic.
Completamente rendida a estas fotos. Parabéns 🙂
Retratam das melhores memórias desta aventura por Zanzibar…
Que história, experiência e fotos encantadoras! Ás vezes esquecemos das coisas simples da vida! Boiar também uma das minhas atividades favoritas no mar. 🙂
Mariana, obrigado 🙂 Sim, também ADORO boiar.. de dia ou de noite. Perspectiva completamente diferente. Esta foi uma das histórias que mais me marcou nesta viagem pela Tanzânia e Quénia. Beijinho e boas viagens…
Aí que história mais linda. É pra isso que viajamos, ne? Para esses pequenos momentos. Fico triste de não ter registrado nem metade desses acontecimentos mas guardo em minha mente e coração. Parabéns pelo texto, é de enxer o coração de amor.
Victoria, muito obrigado. Do coração 🙂 Ainda bem que esta experiência não me tocou somente a mim… Beijinho e boas viagens…
Mas que belo texto, que nos leva a viajar também! Parabéns!
Adriana, foi uma das melhores viagens nesta jornada africana 🙂
Que relato fantástico, que experiência incrível! Parabéns pelo artigo!
Obrigado… e espero que um dia sejam surpreendidos por experiências similares… 🙂
Sabe que esse tipo de viagem tem me despertado cada vez mais interesse? Adoraria viver uma experiência como a sua, lindo relato! Obrigado por compartilhar.
Abs
Amilton, depende muito de nós… “Basta” que estejamos atentos e despertos a tudo o que nos rodeia e estarmos recetivos ao convívio com os locais… as boas histórias chegam até nós de todos os lados 🙂
Que belo relato, e lindas fotos! Essa é sempre a melhor parte de qualquer viagem: a conexão que surge com quem a gente menos imaginaria. Obrigada por compartilhar sua experiência 🙂
Obrigado eu pelo comentário e interesse, Marcela 🙂 E concordo com tudo isso: NADA se compara ao contacto com os locais, são as histórias que ficam para uma vida…
Sensacional… mais que um post, uma lição de vida, de cumplicidade e de confiança no desconhecido. Parabéns!
Obrigado, Regina. Foi, de facto, das mais belas experiências que tive com crianças…
A simplicidade das crianças é tão linda! Queria eu ter pedido a alguém me ensinar a nadar, porque não sei até hoje hahaha
Camilaaaaaaaa… sério? 🙂 Fiquei a saber, depois de voltar, que há um programa especial em Zanzibar para ensinar as mulheres/crianças a nadar… inclusivamente, há um trabalho fotográfico sobre o tema premiado no World Press Photo.
Que história mais lindamente narrada! A alegria do momento esparrama-se em cada frase e me invade de tal maneira que em determinado momento creio que também estou a boiar naquelas águas, escutando risos de crianças que são felizes com nada… comovente.
Mais comovente ainda foi “E vontade de estar aqui a fazer precisamente isto.”…
:))) Analuiza, um abraço transatlântico do tamanho do Mundo 🙂 Obrigado e grande beijinho… foi, realmente, muito especial…
Este texto conseguiu encher-nos o coração de amor, realmente não deve existir melhor sensação que essa! E viajar é isto mesmo! Parabéns pelo excelente artigo 🙂
Obrigado, Ioana. É assim que me senti: com o peito cheio de amor, pelos genuínos sorrisos de crianças puras…
Que belo texto, emocionante. Os teus textos transportam, obrigada por essa linda partilha.