Segue-me

O que em 1994 se passou no Hotel Milles Colines foi inspiração para o conceituado filme de Terry George (2004) protagonizado por Don Cheadle, Nick Nolte, Joaquin Phoenix, Desmond Dube e Sophie Okonedo. No meio da loucura completa, em pleno início do mais sangrento dos vários genocídios no Ruanda, o gerente do hotel protege a sua família, a dos funcionários e estrangeiros lá hospedados. E amigos, e conhecidos. E crianças. E religiosos. E todos os que lá conseguem chegar. Está no centro da mais concorrida e central das colinas de Kigali. Morrem sete funcionários. ‘Culpados’ de serem tutsi. Ou de os albergar. “O memorial lá fora recorda-os. Foram heróis a tentar fazer o seu trabalho, a cuidar e proteger as pessoas”, diz Fiable Porter. O meu interlocutor tem apenas 26 anos. Mas recorda esses tempos como se fossem hoje: “Mataram a minha mãe. E a minha irmã mais nova….”. Tristeza no olhar. Apenas. Fico mais incomodado do que o meu interlocutor. Sabia que podia ouvir algo assim… Exibe um brilho saudoso no olhar, que deixou de fixar em mim. E faz uma pausa que me faz duvidar. “Paramos por aqui?”. Prefere continuar. O seu semblante respira tranquilidade. Quer dar-me o testemunho do seu exemplo. Como se curam feridas impossíveis de cicatrizar. Obviamente, sem qualquer interesse na sordidez específica dos assassínios. Não é gratuitamente que se invade as memórias mais duras de alguém. Muito menos quando é irrelevante para a história. Nesses tempos, nem as crianças foram poupadas a violações, decapitações, tiros e cortes de membros com machetes. Valeu tudo para acabar com o mal tutsi. Nas ruas de Kigali ainda se encontram jovens com lesões graves infligidas em criança. Acabaram, violentamente, com a vida de quem amava. Porter é criança e assiste a tudo. Vê quem mata…cresce sabendo quem é, onde encontrar. Como pode fazer contas com o passado. Como aliviar a dor com algum travo a justiça. Mas não quer fazer nada. “É tempo de reconciliação”, justifica, sem que lho tivesse perguntado. Leu as minhas expressões faciais. Mantém serenidade quase perturbante. Não me imagino a perdoar algo assim… “Não há mais tutsi ou hutu. Somos um. Temos a missão de fazer deste país um dos líderes de desenvolvimento desta região, da África e do mundo”, diz o jovem concierge que um dia espera ser diretor financeiro do hotel. Por isso estuda contabilidade. Madamme Consolle é a atual dona do empreendimento que, em breve, terá parceiros suíços. “Muita gente fica instalada no hotel Serena – maior e mais luxuoso -, mas vêm cá jantar. Tomar um copo. Estar num lugar histórico que entrou na história, depois amplamente mediatizada pelo filme Hotel Ruanda.” O filme foi rodado na África do Sul. A verdadeira ação foi aqui, onde estou sentado. Degusto um crepe de maça, com pedaços de fruta e gelado. Sob palhota ao lado da cristalina piscina. Suave música africana pinta o ambiente. Imagino o impacto do momento e das aterradoras dificuldades daqueles dias. Que tudo, podia acabar da forma mais violenta possível. A qualquer momento, instante. Com a comunidade internacional, sem vergonha, a fechar os olhos. Há quem garanta que esses tempos hediondos não voltam. Convicções fundamentadas? Há semanas, um dos líderes da oposição foi condenado a prisão. Em vários discursos públicos, nega o genocídio. Este ano cumprem-se duas décadas desta história negra. Que a horrenda memória não perca frescura ou clarividência….

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