Mais do que as memórias das lutas contra o Apartheid, é a vontade de se fazer futuro no Soweto.
Se há bairros no Mundo que sempre viveram e se expandiram no preconceito, o Soweto faz parte da lista dos mais icónicos. É difícil apagar da memória dos que nos anos 90 do século passado já eram adultos o facto de, no tempo do Apartheid, este ‘bairro’ na periferia de Joanesburgo ter sido o principal cenário de protestos e manifestações contra a política de discriminação racial.
Situemo-nos, então: a descoberta de ouro em Joanesburgo no fim do século XIX trouxe imigrantes de todo o Mundo à África do Sul, tornando rapidamente a cidade na maior do Continente. Entre 1903 e 1904, e com o descontrolo populacional, uma praga serviu de pretexto para limpar a urbe, enviando-se – alegadamente, de forma temporária – os trabalhadores negros e todos os não europeus para uma zona periférica, de onde, na verdade, não voltariam a sair.
Atualmente, o Soweto (South Western Townships, ou “Bairros do Sudoeste”) deixou de ser unicamente uma localidade periférica para se tornar num gigantesco ser pleno de vida, com cerca de quatro milhões de habitantes, a uns 15 quilómetros de Joanesburgo.
A segregação cresceu na precariedade, uma vez que o acumular de pessoas foi feito sem planeamento, quer na ordenação do território, quer na construção de infraestruturas tão simples quanto o saneamento básico. Em pleno século XXI há ainda muitos problemas por resolver, apesar de, inesperadamente, ter encontrado um empreendimento de ‘luxo’ sem qualquer habitante há uma década. Dizem-me que não há quem tenha dinheiro para ali viver… mas as casas continuam a ser renovadas e encontrei várias outras mais luxuosas e em normal uso. Mistério por decifrar…
Os inevitáveis protestos contra a discriminação racial tiveram várias datas marcantes, destacando-se o 16 de junho de 1976, que ficou conhecido pelo Massacre do Soweto.
Cerca de 20 mil estudantes manifestavam-se, pacificamente, contra a precariedade das suas escolas – superlotadas e de fraca qualidade – durante o Apartheid. Além disso as suas 11 línguas nativas foram proibidas nas escolas, ensinando-se somente a do regime, o africâner.
Quando, durante o desfile, chegaram a uma espécie de rotunda viram forte dispositivo policial; optaram por seguir por outra rua, para evitar o confronto, só que no fim da mesma estavam mais elementos da autoridade, com instruções e vontades menos pacíficas. A repressão violenta da manifestação terá resultado em cerca de 700 mortos, incluindo a do jovem Hector Pieterson, de tão-só 13 anos, que se tornaria um símbolo dessa tragédia. Parar no seu memorial é uma das obrigações de quem vai ao Soweto. Aliás, fica numa das zonas mais interessantes, junto a um mercado de artesanato e street art. Já lá vamos…
A exploração do Soweto foi feita de bicicleta e a única coisa que lamento é não ter demorado (pelo menos) todo um dia, para ter tempo de falar, convenientemente, com pessoas e entender bem melhor a sua realidade atual, onde persistem claras assimetrias.
A rua Vilakazi é uma das mais emblemáticas ou não tivesse sido a morada de dois vencedores do Prémio Nobel da Paz. Sabes quem? Obviamente, Nelson Mandela (1993), porém essa não é difícil. O outro foi o arcebispo Desmond Tutu (1984), igualmente pelo seu trabalho contra o Apartheid, todo um símbolo de tolerância e diálogo inter-racial.
A Mandela House, onde o ativista viveu antes de ser preso, durante 27 anos, na Robben Island, bem longe, ao largo da Cidade do Cabo, ajuda-nos a perceber um pouco melhor a história de Nelson Rolihlahla Mandela, o advogado, líder rebelde e presidente da África do Sul de 1994 a 1999. Considerado o ‘pai’ da moderna nação, o Xhosa (etnia) ‘madiba’ tornou-se no mais importante e carismático líder da África Negra.
No horizonte, conseguimos ver as ‘artísticas’ Orlando Towers, que trajam belos graffiti, e que são famosas por servirem para saltos de ‘bungee jump’. São imponentes na paisagem, tal como o FNB Stadium (Soccer City), o maior de África. Orlando Pirats e Kaizer Chiefs são os dois maiores clubes do Soweto e nada vos precisarei contar sobre a intensidade desta rivalidade.
Quando a fome dá sinais, entro num bar, gradeado até ao último poro. Nem por isso qualquer sentimento de insegurança, que não tive em nenhum momento destas quase duas semanas sul-africanas. Pelo contrário, lá dentro – onde não era suposto estar – respira-se simpatia e genuínos sorrisos. Surpresos com a profundidade da minha curiosidade e vontade de interagir. Empatia imediata é termo que bem posso utilizar. Um dos locais onde me apetecia permanecer, sem a escravidão do relógio. Acabo por provar um pão com uma mistela algo picante. Bom, o ‘algo’ era mesmo um eufemismo quanto à intensidade do picante.
Mesmo antes de chegar ao memorial Hector Pieterson é impossível não me perder com vários murais que tornam a street art (mais) um bom motivo para se explorar os recantos do Soweto. E logo ali um mercado artesanal do qual é impossível sair em compras. Pela qualidade e diversidade do mesmo. E os preços que não nos afugentam. Tal como os vendedores.
Encontro, por aqui e por ali, adultos sem trabalho. Dois dedos de conversa para assumirem que se sentem à parte da sociedade. Sem oportunidades. De nenhum escuto palavras violentas. É uma revolta resignada. Novamente o aperto no peito por simplesmente não poder ‘ficar’.
Winnie ‘Mandela’, a segunda das três esposas de Mandela, com quem o líder esteve junto de 1958 a 1996 (Evelyn Ntoko Mase de 1944 a 1958 e Graça Machel de 1998 até à sua morte, em 2013), também tem o seu destaque no bairro. Foi um dos seus braços direitos na luta anti-Apartheid. É aqui, junto à casa que partilhou com Mandela, que há um novo mercado, no qual um moçambicano trabalha há umas duas décadas.
“O Soweto é um fantástico sítio para se viver. Estou cá há muito tempo e não quero sair”, garante-me, antes de me surpreenderem com cânticos e danças tribais. Faz parte do ‘espetáculo’ e são bem entusiasmantes.
Há uma igreja na qual reunia a resistência ao regime de segregação, contudo não tive oportunidade de a visitar.
Há um vistoso ‘braai’ (churrasco tipicamente sul-africano) à espera, no entanto os meus apetites – e consciência ecológica – andam cada vez mais distantes desses desejos, pelo que me fico por belos guisados de vegetais e dois sumos de ananás.
Antes, dão-me a experimentar duas cervejas artesanais. Todos bebemos pelo mesmo recipiente, de barro. Precisarei de uma segunda oportunidade para ficar mais convencido.
Há música e um ambiente descontraído, quase festivo. O Soweto tem ainda uma alma dura, mas está a ser reinventado e todos somos poucos para ajudar a essa revolução…
*** BORNFREEE viaja a convite da Embaixada da África do Sul em Portugal ***
15 Comments
Que história essa a de Soweto. Quando fui à Joanesburgo, passei apenas menos de um dia e não tive tempo de ir à Soweto mas quero voltar com certeza porque acho importante conhecer mais sobre a história do lugar e do país que ainda é tão vivo por lá.
Liany, vale a pena regressar à África do Sul… e perceber com o Soweto se está a transformar e os vários projetos muito interessantes que estão a nascer e a criar uma nova dinâmica e alma…
Rui, gostei muito do relato. Estou indo para África do Sul e estava na dúvida se visitaria ou não o Soweto. Após ler tudo me interessei bastante, recomenda alguma empresa que faça o tour por lá?
Leo, como fui a convite do turismo da ÁFrica do Sul, através da sua embaixada em Portugal, não prestei atenção a esse detalhe. Mas sei que a bike tour foi organizada por um “hostel” que tem um belo restaurante/esplanada e com grafitis com bicicletas nas suas paredes.
Gostei de ler este teu artigo. Estive em Johannesburgo apenas um par de horas e não deu para nada. Gostava muito de visitar o Soweto: parece ter mais cor que o centro da cidade onde estive e, que não gostei. Talvez por ter lido tanto comentário negativo acerca dela, tive um bocado de medo de andar por lá. Nunca senti um ambiente tão pesado como aí.
Samuel, Joanesburgo está a mudar e o Soweto também. Confesso que não senti qualquer problema – é verdade que estive em ambiente controlado – e fiquei muito agradavelmente surpreendido com algumas áreas de Joanesburgo, bem como a nova dinâmica do Soweto, apostado em mudar a imagem que o Mundo tem sobre si, mantendo vivas as suas raízes históricas.
ahh com ctz quero voltar com os planos de visita da Africa do Sul. estou gostando de ver a serie sobre a africa do sul aqui, teu olhar é bem diferente e mostra uma realidade q nem sempre vemos nos blogs
Angela, o país está a avançar e a mostrar uma nova imagem, mais apelativa do que as notícias do antigamente. Acredito que a África do Sul está mesmo a mudar, a reinventar-se e a torna-se um país cada vez mais estimulante.
Muito interessante seu artigo sobre o Soweto. Adorei os murais e os retratos dos habitantes. Passear por locais recheados de importância histórica é sempre uma experiência marcante.
Sim, foi bem interessante e marcante. Uma coisa é ler ou ver na TV, outra é ir lá pelo nosso olhar e sensibilidade 🙂
Fui apenas a Cidade do Cabo quando visitei a África do Sul. Uma pena pois dispus de apenas uma semana para conhecer esse país tão incrível. O Soweto parece ser bem interessante. Espero poder visitar um dia.
Liliam.. há IMENSO para conhecer na África do Sul. ADOREI a zona da Cidade do Cabo – e toda a rota até ao Cabo da Boa Esperança – contudo o país tem vários registo estimulantes, como safaris e uma nova urbanidade em Joanesburgo e Soweto…
O Soweto respira a cultura da África do Sul, deve ser incrível conferir as danças e cantos de perto, uma imersão cultural.
Fabíola, um dos bairros mais épicos e históricos de toda a África… vale bem uma longa visita 🙂
Parabéns pelo seu artigo sobre o Soweto
“Dizem-me que não há quem tenha dinheiro para ali viver… mas as casas continuam a ser renovadas e encontrei várias outras mais luxuosas e em normal uso. Mistério por decifrar…”
Apesar de tudo, começa a existir alguma mobilidade social. Na minha visita ao Soweto, o que me foi explicado na altura foi que apesar de existirem pessoas que conseguiram fugir à pobreza, elas não querem ir viver para Joanesburgo para junto das classes brancas ricas.
Daí existirem casas luxuosas dentro do Soweto.