No Belize há um ‘pirata’ que garante ter sangue português…
“Quando a escravatura já tinha sido abolida, Francisco Garcia, a mais antiga referência dos meus antepassados portugueses, e os filhos Manuel e António navegavam por estas águas ao serviço de um holandês chamado Debracht. Possuíam o barco Colibri. E fartaram-se de ganhar dinheiro a traficar escravos quando isso já era ilegal”, conta, orgulhoso, o nosso veterano anfitrião.
Estou no Belize, esse paraíso da América Central, em casa de George Garcia, que tem todo o perfil de pirata. Nos gestos, nas atitudes, no sorriso… Sem dúvida, o ADN de corsário persiste neste sessentão, que sempre viveu sem regras.
Jantamos na sua sala decorada com múltiplas referências ao mar. E fértil em mapas antigos. Todo um autêntico cenário de caça ao tesouro. Entre dois pontos de snorkling, tínhamos apanhado um belo barracuda. Na sua cozinha, George ajudou-nos a prepará-lo, com a condição de ter direito ao seu quinhão à mesa. Parece-nos justo.
Os antecessores familiares de George, 63 anos, foram protagonistas de atos de pirataria na “altura turbulenta” em que o território deixou de integrar a Nova Espanha para ser parte das Honduras Britânicas. “Os ingleses já tinham abolido a escravatura, mas nesse tempo as leis também eram violadas. Francisco Garcia beneficiava de relações privilegiadas com o Brasil. E era de lá que transportava os escravos…”, revela, como se nos transmitisse a mais épica das histórias da humanidade.
A noite vai longa e a conversa navega invariavelmente por mares ilegais. Escravatura. Contrabando. Pirataria. Ausência de regras. Bebe outro copo de encorpado vinho chileno. Faz uma pausa. Fixa o olhar na história contada nas paredes da sua sala antes de o fixar no meu: “Não vou criticar o que os meus antepassados fizeram. Há que analisar as coisas no seu devido tempo. As mentalidades eram outras. Apraz-me ver que se safaram na vida. Fossem quais fossem os meios”.
Quando o negócio secou definitivamente, estes corsários antepassados assentaram no sul do Belize, na zona de Punta Gorda. Em poucas gerações o sangue português chegou a esta figura de cabelo grisalho branco, de algodão doce. Como o bigode. A tez, morena. Um físico e aparência que contradizem um espírito que tem muito de latino. Demasiado. Eternamente com voz lenta e serena, garante sentir-se lusitano. Mesmo nunca tendo pisado terras nacionais: “Não tenho perdão por nunca ter ido a Portugal, mas espero fazê-lo para o ano”. Continuará a dizer o mesmo…
O quinhão do negócio com a escravatura diluiu-se de geração em geração. Teve de fazer pela vida. O WestWind Hotel é onde tem passado os últimos anos — o seu projeto desde que assentou com Lisa. Quase perdeu a conta aos filhos, de várias mulheres. Nenhum desta norte-americana 23 anos mais nova, a última a ser conquistada com métodos… corsários.
“Admito que fui um pirata. Roubei a virtude da minha querida Lisa. Estava cá de férias. Uma inocente. Religiosa. Caminhávamos pela praia. A lua cheia pintava um mar sereno. Sombras de palmeiras no leve ondular. Nessa altura era um galã. Admito. A Lisa tropeçou e eu, ágil, agarrei-a. Mantive-a, firme, nos braços. Olhos nos olhos. Não podia deixar escapar a oportunidade. Beijei-a. E assim conquistei o seu coração”, conta, imitando os sedutores gestos de então.
É com charme que George alimenta o amor – e a paciência – de Lisa. E com doce pasmaceira que passa os dias entre o jardim das traseiras e a praia de palmeiras aos pés do WestWind. Não teve “oportunidade” – nem vocação, digo eu – para criar, até adultos, os filhos de diferentes amores que terá roubado. Certamente que lhes deixou uma semente de irreverência, desconheço até que ponto um gostinho especial por quebrar todo o tipo de normas. Será George Garcia o último dos piratas ‘portugueses’ do Belize?
26 Comments
Muito boa a matéria! Me deixou bastante curioso! Parabéns
Obrigado, Robba. Abraço e boas viagens…
Que história interessante! Como sempre seus relatos e experiências são muito ricos e repletos de ensinamentos e reflexões. Adorei ler mais esse. Bjs
Obrigado pelo carinho, Viviane 🙂 Beijinho e boas viagens…
Que história legal e que experiência interessante. Conhecer todas estas histórias sob a ótica de um sucessor deve ter sido algo único.
Sim, Michela, teve muita “piada”. O George encarna mesmo o personagem de pirata…
Muito interessante esse post! Deve ter sido realmente muito bacana conhecer a história através do George! Curioso saber também que algumas pessoas ainda preservam tão fortemente a história e a cultura de seus antecessores não é?
Niki, é mesmo isso. Há pessoas que são autênticos livros… um poço de verdadeira história.
Essas curiosidades mundo a fora é um caso a parte, não é mesmo. Muito interessante. Fiquei com vontade de conhecer mais a fundo.
Andrea, só viajando podemos encontrar pessoas assim… “singulares” 🙂 Boas viagens!
História fantástica! Como é que foste parar à sala de jantar dele? 😉 Parabéns pelo excelente relato!
Andava à procura de estadia… havia um hostel cheio em frente… e sugeriram-me ficar lá. Pelos vistos era tipo um “hotel”, mas na verdade éramos os únicos “hóspedes”. Isso dava mais uma boa história :)) Beijinhos, Andreia…
Que incrível! Deve ser muito interessante conversar com pessoas assim, carregadas de histórias e aventuras.
Beneth, este tipo de pessoas ‘fazem’ as nossas viagens fantásticas 🙂
Adorei o relato…..
“Não vou criticar o que os meus antepassados fizeram” me faz lembrar um assunto não discutido em minha familia (meu bisavô português fez algo muito errado – que nunca nos disseram – e o pai dele o mandou pro Brasil!).
Juliana, acho que esses “castigos” (que resultaram em ‘benção’ para muitos) era habituais nas primeiras décadas do século XX 🙂 Beijinho e boas viagens…
Adorei! Deve ser o máximo ficar hospedada em um lugar assim, ouvindo histórias de vida e de aventuras, enquanto se come um peixinho pescado por ali mesmo… Muito bom
É mesmo isso, Renata. Uma experiência para não esquecer… e partilhar 🙂 Beijinho e boas viagens…
Mais um belíssimo texto sobre uma história pra lá de interessante. Pelo visto George tem muito orgulho de seu sangue corsário e de suas conquistas amorosas!
É uma verdadeira “figura, Tina 🙂 Obrigado pelo carinho e grande beijinho.
oi Rui… eu bem gostaria de ouvir essas histórias com minhas próprias orelhas… entonações e acentos, risos e pensativas! Entretanto, seu texto, sua narrativa conduziu-me lindamente por este passado. 🙂
Contextualizar atos passados, mesmo os mais hediondos… Assim que devemos nos voltar ao pretérito. Afinal, ele existiu, não pode ser mudado e foi responsável por nosso presente. Sábio este senhor de cabelos brancos, que deixou vir à tona seu sangue de pirata ao roubar a virtude de Lisa e me deixou a suspirar com tais atos românticos de herói arcaico… ehehehehehehehe
:)))))))))))))) Analuizaaaaa… é mesmo isso :))) Encontrar personagens assim é uma ‘dádiva’ em qualquer viagem. Na verdade, gosto de investir parte do meu tempo a falar com os locais, preferencialmente os mais velhos, que me contam muito mais sobre o seu país e cultura do que qualquer artigo. São verdadeiros livros humanos… beijinho e boas viagens…
Que lindo relato!! É muito importante que carreguemos as histórias dos nossos antepassados, “certo” ou “errado” é parte da nossa história também, e assim como disse George Garcia, não nos cabe criticá-los e sim entender as situações. Adorei esse post!
Obrigado, Aline, pelas palavras simpáticas. E é mesmo isso que dizes: mais do que criticar, é tentar entender. Os tempos eram outros… Beijinhos e boas viagens…
Adorei seu relato. Realmente transporta o leitor para a história. Minha namorada ama essas histórias, vou mostrar a ela. Parabéns pelo post.
Obrigado pela gentileza, Thiago. E agradeço a partilha. Espero que ela goste 🙂 Abraço e boas viagens!