O problema das viagens com tempo contado é precisamente esse: não temos todo o tempo do Mundo para fazermos o que nos apetece. E neste momento, mais do que nunca, percebo o quanto o TEMPO é um recurso, uma riqueza que tantas vezes desprezamos. Cada minuto é importante. E não, não precisa de ser vivido como se fosse o último – esta é uma das maiores “estupidezes” no que toca às enfadonhas frases feitas.
Todo este introito pelo puro lamento de não conseguir fazer os dois dias de trekking entre Kalaw e o Lago Inle. É necessária, pelo menos, uma noite. Que não temos. São dois dias a dar-lhe, mas se já foi ‘complicado’ meter Kalaw no programa (em boa hora o fiz), seria apertado disfrutar deste lugar e fazer a dita caminhada. Que, pelo que ouvi, aconselho vivamente.
As vizinhas Tar Yaw e Twar Thit são, assim, as únicas aldeias que vamos conhecer. Não diferem muito uma da outra, como não o farão das restantes. E estão próximas de um miradouro com vista privilegiada para todo o horizonte.
Arrancamos pelas 08:00, que não tarda o sol aperta. Apesar de estarmos em montanha e de se notar uma outra frescura, o astro-rei faz-se notar. E, como bom cavalheiro, o meu chapéu já está em cabeça de donzela esquecida.
Admito que a primeira parte da caminhada não me traz prazer especial. Tirando um feliz encontro com uma escola pré-primária, que entusiasma qualquer viajante, ao mesmo nível das crianças, o percurso tem muito de… português. Paisagem familiar, ausência de casas. De pessoas.
As encostas começam a revelar as primeiras plantações de chá. E as mulheres que o apanham. Há quem já refresque os pés num pequeno regato que temos de atravessar.
Há uma frondosa árvore que marca o fim do nosso caminho. E que depois se dispersa em vários. Tar Yaw é já ali. Lembramo-nos de semear fotos disparatadas. Daquelas que teremos pejo de partilhar.
O chá está espalhado no solo. Uns bons metros quadrados. E mãos experientes tratam de o virar e revirar. São 24 horas para que seque… não em demasia. Não fala inglês. Não há hipótese de contacto.
Umas casas abaixo, Maria já está a entrar numa habitação, de madeira. Em baixo, os animais. Ela está no piso habitacional. Um “open space” onde está tudo: quarto, sala, cozinha. Sem um único móvel. Esta gente é humilde. Não há desses luxos.
O homem da casa serve-nos um chá. Da sua própria safra. A esposa está a um canto, trabalhando as folhas depois de secas. A comunicação é gestual. Entendemos o que podemos. O local é acolhedor. Apetece ficar por aqui. Encontrar uma via de diálogo e partilhar dois/três dias neste pobre éden, bem longe da civilização.
Há uma lareira simples. Uma janela em cada uma das quatro paredes de fina madeira. Sem sinal de wc, instalado em pequeno cubículo afastado da casa. Umas mantas no chão. Uma criança, que mais parece neto do que filho. As agruras desta vida deixam marca vincada na pele. E há chá. Muito chá. Compraremos cinco saquinhos, que lhe rendem cinco euros. Ainda está incrédulo. Uns estranhos aparecem, são convidados para sua casa e, subitamente, o dia está mais do que ganho. Sei que não ganha este valor em intenso dia de trabalho.
As donzelas não resistem a experimentar uns adereços de roupa étnica. Terei o privilégio de captar algumas imagens de intensa beleza.
Gosto de gelados. Em qualquer lado. E na Birmânia há uns saborosíssimos, das frutas mais improváveis, que custam 10 cêntimos. Um grupo de crianças não tem um cm2 de pele limpa, no rosto e mãos. Gosto deste besuntar.
O caminho estreita-se rumo a Twar Thit e fica ainda mais curto quando uma moto. Carregadíssima, se aventura em exercício todo-o-terreno. Prova superada. Nada como a experiencia para suplantar dificuldades.
Há jovens que trabalham a arranjar o caminho. E estão em hora de descanso. “Quase-homens estilosos”, como lhes chamaria uma das mulheres que caminha a meu lado. Cabelos longos – alguns, coloridos – e dentes em fim de ciclo, que anunciam uma vida pouco simpática.
A aldeia está deserta. Os seus estão espalhados pelas encostas. O chá a isso obriga. Há apenas um edifício, comum, com jovens e monges. Em puro descanso. Surpresos com a nossa presença.
À saída da aldeia, há árvores que chegam ao céu e casas minúsculas nos seus calcanhares. Sinto-me um liliputiano. E não desgosto…
O almoço é em ponto elevado. Um quase miradouro. A montanha espraia-se até lá abaixo e sentimo-nos reis neste Mundo. Água refresca. Comemos com as mãos. E o tempo – o tal pelo qual suspirava ainda há pouco – para. Congela. Desta vez, sou quem manda.
O regresso é por caminho imprevisto. Atravessamos floresta rumo a um lago. O insólito quando nos cruzamos por “vacas trepadeiras”. Não imagino como se adaptam tão bem a este tipo de terreno.
Mais tarde, já em férteis terrenos planos, crianças a descansar no dorso de gado, indiferente a este luxo. Há um quintal de cabana isolada com morangos. Dos que sabem MESMO a morango. E vamos avançando rumo ao horizonte, onde o sol se despede.
Entraremos em casa onde experiente professora ensina inglês às crianças. É este o futuro, por estas bandas: o turismo. Em uníssono, mostram-nos as suas habilidades linguísticas. Bem-educadas. Humildes. Lindas…
Quando a longa jornada está para terminar, crianças invadem o nosso caminho, a correr. De supetão, esticam os bracitos e oferecem uma flor a cada um e desatam a fugir, libertando sonoros sorrisos que perfumam o dia com odor muito especial…
Isto é a Birmânia..
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