Que estranha, esta ilha de gelo e fogo!
É fácil imaginar os elfos a empilhar colunas de basalto e antigos deuses a voar sobre as vertiginosas cascatas. Deuses a fazer dançar suaves flocos de neve sobre as árvores e as montanhas. O deus do magma a rasgar paisagens brancas com fumarolas ocres e azuis lagos de acido sulfúrico. O deus da terra firme a cavalgar placas tectónicas conquistando território ao deus do mar.
E a vingança do irmão deus da água, transformando rios em glaciares? Destruindo a rocha e cavando o leito de tumultuosos rios de verde-azul. Abraçando as montanhas numa neve permanente…
(…)

É dia de temporal. Há alerta ‘vermelho’ na região, que chega a ser noticiado nas tv’s portuguesas. Aconselham-nos a ficar por casa. De todo imprudente partir para uns 200 quilómetros rumo a sul. A neve não para. Cai abundantemente desde a véspera. De tal forma que nem conseguimos ver bem o belo fiorde ao qual chegámos em plena intempérie, na noite anterior.

Surge uma brecha. Os céus dão-nos tréguas e vamos saborear esta terra de nome impronunciável: Seydisfjordur. É aqui que me rendo ao mais belo dos cenários que abraçam igrejas e paisagem. Combinação simples. Esteticamente soberba. Perfeita.
Avançamos. Depois de subir, lentamente, ingreme e ziguezagueante montanha, de volta a zonas mais interiores da ilha, não tardaremos a perceber que a estrada nacional um, que contorna a ilha, não está nas melhores condições. Os carros com os quais nos vamos cruzando dão sinais de luzes. Repetidos. Duas viaturas param, a nosso pedido. Desaconselham-nos, veementemente, a prosseguir. O segundo confessa ter estado retido na neve mais de três horas até ter sido salvo. Estamos em grupo. A decisão parece fácil. Não é tempo de inusitados heroísmos ou desnecessárias imprudências que arruínem esta fantástica jornada.
Só daremos a volta quando o caminho perde definição e já nem sabemos bem o que é estrada e natureza. Tudo é branco. Uns metros mais podem resultar em acidente e são ainda muitos os quilómetros que falta cumprir.
No lento e cauteloso regresso, percebemos que já cortaram a nacional. Teremos sido os últimos a passar… e em boa hora revertemos a marcha. Pararemos junto a casa com vários carros à porta e que não sabemos se é também ‘guesthouse’. Se nos garante estadia. Vamos tentar perceber a real situação. O que podemos fazer. As nossas opções. Não avançar hoje para Höfn vai mexer com todos os planos e logística.
Abre-se a porta. Precisamos de ajuda. Que surge em forma de personagem de Tarantino. E em tamanho XXL. Calças largas. T-shirt com cavas. Tranças desfeitas. Copo de whiskey e cigarro a fumegar. O sorriso é neutro. Olhar gélido. Não chego a vislumbrar simpatia. Nem o oposto. Balbucia umas palavras com outros islandeses nos mesmos preparos. Não fosse a tempestade de neve que persiste e o frio que quase me enregela e pensaria que estava nos trópicos. Imagino quando é que a singular figura diante de mim vai pegar em arma de canos cerrados e tornar o nosso dia num inferno. Desperto para a realidade instantes depois quando me sugere um número de emergência para quem viaja em dias como este. Obrigado. E até breve.

“Sim, a nacional um foi cortada. Impossível avançar. Mas podem seguir pela estrada dos fiordes. Perfeitamente transitável. Voltam a Egilsstadir e depois seguem pela 92 e posteriormente a 96. Sem qualquer problema. Não tem que enganar”.
As notícias que desejava ouvir. Embora, demasiado cedo, comecemos a questionar este otimismo da assistente em viagem. No fim da exigente e louca jornada, soou mesmo a completa negligência.

Quais formiguinhas, começamos a desafiar os deuses. Que não terão ficado totalmente satisfeitos com a ousadia. A neve persiste. O céu não abandona a negridão. O cinzento carregado. O vento entra em ação em imprevisíveis rajadas. Com o gelo, fazem-nos rodopiar na estrada com maior regularidade do que os nossos corações aguentam. Difícil controlar o que quer que seja.
Sei que os deuses brincam connosco. Com uma mão, mostram todo o seu poder. O quão pequenos, ínfimos somos. Com a outra, vai-nos segurando nesta aventura que é tudo, menos ajuizada. Vale pela espetacularidade e beleza dos cenários com que nos deparamos a cada quilómetro…
Pelo retrovisor, tento garantir que o segundo carro BornFreee continua no ‘radar’. Manter as luzes por perto. Quem me segue, deve estar desconfortável com a minha opção de conduzir pelo centro da via. E será tomado pelo mais puro pavor quando uma rajada de ventosa neve nos retira qualquer visibilidade. E, quando o curto horizonte clareia, vê o meu carro na berma oposta. A escassos centímetros de abraçar o mar… E são três as vezes que repetimos a descontrolada cena.


Estranhamente, sempre sereno. Totalmente. Sinto-me como que protegido por forças maiores. Subitamente, transformo-me no ateu mais crente do planeta: relaxadamente entregue a um destino que, no íntimo, sei que apenas me pode sorrir. Sempre ciente que sou responsável pelos que transporto. Que seguem quase sempre em silêncio. Mesmo quando o carro parece pequena marioneta ao sabor das tormentosas rajadas de vento.
Toda a jornada é um eterno suspense… Os 200 quilómetros previstos vão, afinal, transformar-se em mais de 300. Serão 10 as longas horas de viagem, que exigem permanente atenção. Cuidado. Sangue frio. Precisão (quase) cirúrgica ao volante.
Ainda assim, a jornada é de sobrenatural beleza cénica. Paisagens sublimes que vão desfilando sob a calma banda sonora que nos conduz. Montanhas imponentes. Ventos que assobiam. Aves que esgravatam o gelo. Cisnes que baloiçam na ondulação cinzenta. Barcos nevados em terra. Encantadores desfiladeiros beijados pelo mar…
Esta é uma conquista a metro. De cada marca amarela (de segurança) na estrada não conseguimos ver a próxima. Aviso sério para a insegurança em que avançamos. Não importa. Estamos unidos. Afagamos o medo inebriados pela natureza carrasca, confiando no seu instinto maternal. Sentindo a força e o fogo dentro de nós, já não somos formiguinhas. Tornamo-nos vikings!! Conquistamos o Mundo de cabelo e alma ao sabor do vento…
*** Este texto surgiu do desafio de escrita criativa que o projeto Bornfreee lança aos que consigo partilham a viagem. Iniciado pela sensibilidade de Marília Ferreira e completado pela pena Bornfreee ***
38 Comments
Demais essa aventura, ainda pelos caminhos e não no destino final. Tua narrativa nos leva junto aos perigos e conquista!
Obrigado, Luís. Um grande abraço e boas viagens!
Estoucom muito vontade de ir para a Islândia, pena que quando estava morando em Dublin não deu tempo de ir.
Christian, mete logo no teu roteiro 🙂
Que incrível esse texto! De-ma-is!!!!!
Obrigado, Lulu. Beijinho e boas viagens…
Parece mesmo uma terra de deuses e fogo! Islândia esta na minha lista, e é a primeira vez que um texto descobre o local como vejo: magico, e não apenas no sentido figurativo da palavra. Que lindas fotos, qu delicia de relato
Klecia, muito obrigado pela gentileza das palavras 🙂 Beijinhos e boas viagens… Não tardes a ir à Islândia :)))
Ainda não conheço!! Dica anotada!! =) Adorei
🙂
Me senti como se estivesse vivendo essa jornada com vcs. Fiquei tensa!
CaRia… acabou tudo em bem 🙂 Pode relaxarrrrr… bjks e boas viagens…
Me senti como se estivesse com vcs nessa jornada!! Hahaha…fiquei tensa!
Viajei legal junto contigo!
Islândia é um dos países que quero muito conhecer e viajar na neve deve ser desafiador e deve dar uma visão das mais lindas.
Sua narrativa é muito gostosa de ser lida e leva o leitor a viajar nas palavras e se imaginar junto na aventura.
Parabéns!
Carina, obrigado pelas palavras. Não deixes de meter a Islândia como uma prioridade… preferencialmente em meses com neve 🙂 bjkss e boas viagens…
Muito bom seu relato. Adorei as dicas.
Viajei olhando essas fotos. Demais!
Obrigado por compartilhar.
Obrigado, Diego, e boas viagens!
Estou com muita vontade de conhecer a Islândia, lendo seu texto fiquei com mais vontade ainda. Belas fotos!
Estou com muita vontade de conhecer a Islândia, lendo seu texto fiquei com mais vontade ainda. Belas fotos!
Que narrativa linda. Islândia é um dos lugares que estou louco pra ir.
Islândia é um destino incrível!! Depois de morar na Nova Zelândia por 3 anos costumo brincar que a Islândia está para o Atlântico, assim como a Nova Zelândia está para o Pacífico. Engraçado é eles são destinos quase antipodes. A única diferença é que a Islândia está numa latitude maior, desta forma é bem mais gelada e de certa forma mais dramática que a NZ.
Islândia, está aí um lugar que tem me despertado cada dia que passa mais interesse em conhecer. Vou pesquisar mais a respeito. Adorei as fotos do post! Parabéns.
Obrigado, Lid, e boas viagens.
Super legal o texto e a viagem embora eu tenha ficado bem apreensiva lendo e assistindo ao vídeo! Pasisagens incríveis, belas e assustadoras ao mesmo tempo! Que aventura!
Obrigado, Tina Wells. Tudo está bem quando termina bem 🙂 Beijinho e boas viagens…
Acho que nesta estrada eu também viraria a ateia mais crente do planeta!
hahahaha
Mas achei que vocês estavam dirigindo rápido demais! Acho que tomaria multa por lerdeza (se houvesse alguém para me multar)!
😉
Juliana, é efeito do vídeo 🙂 No momento, estando em plano mais alto, não me parece que fosse rápido… Beijinhos e boas viagens 🙂
Que tenso! Imagino como deve ter sido difícil conduzir nesses 300 quilometros. Seus relatos são sempre cativantes.
Obrigado pela gentileza das palavras, Fabia 🙂 Beijinho e boas viagens para vocês…
Que aventura, hein? Fiquei até nervosa lendo, hehehehe. Parecia estar na estrada com vocês. Adorei!
Para a próxima, és bem-vinda, Michela 🙂 Beijinho e boas viagens…
Adoro seus posts e esta última série da Islândia está simplesmente épica. Parece que estou lá, junto, de tão realista e envolvente que é seu texto. Parabéns!
Clau
Me senti como se estivesse com vocês durante a narrativa. Que tenso…rs!
A ideia é essa, Carla 🙂 Tudo está bem quando acaba bem… beijinhos e boas viagens…
Adorei ler este texto. Imagino que tenha sido fantástico e assustador ao mesmo tempo. Parecia que estava lá…
Foi tudo isso, Catarina 🙂 beijinho e boas viagens…
Oi, Rui!
Quanta poesia, beleza e tensão ao mesmo tempo! Tentei me transportar para o momento, não consigo imaginar passar tanto tempo nesta brava angústia! Boas experiências à frente! 😉
Gabi, acredites ou não, é dos mais belos dias que tenho (em mais de 100 países) em viagem… adorei cada segundo 🙂 bjks e boas aventuras!