Mardin era desejo antigo: agora, um deslumbre bem presente.

Enquanto me esgueiro por entre decrépitas ruelas milenares, vou sendo inebriado por ténue melodia. Vou procurando a sua origem por entre ziguezagueantes caminhos que, finalmente, me levam aos acordes tão ancestrais quanto este caótico idílico que é Mardim, no cativante Curdistão turco.

Não demoro muito a ser bem-sucedido. Espreito pela janela entreaberta e logo sou convidado a entrar. Não destrocam uma palavra de inglês, nem precisam: há linguagens universais. Agradeço. Com um sorriso. Complementado por gesto de cabeça e mão no peito, onde costuma habitar o coração. Sento-me. E sou brindado com improvisado ‘concerto’ amador, de genuínos amantes da música e das suas tradições curdas. A qualidade técnica não interessa – quem sou eu para avaliar? – quando estou na melhor sala de espetáculos do Mundo. Três executantes mesclados em plateia reduzida a quatro espetadores.
O sofá é vermelho. As paredes de uma espécie de pedra nua, polvilhada de uma ou outra tela. Sem grande preocupação estética, diga-se. Ou mesmo nenhuma. E uma mesinha com um belo paninho de renda. A atuar temos o que será uma guitarra típica da região, um velho violino e um inventado batuque. A dar corpo a uma voz ‘esganiçada’ que me soa ao melhor Pavarotti.

Percorrer as ruelas do mercado que se espraia pela parte baixa de Mardin (em relação à rua principal) é uma jornada no tempo. Um reencontrar permanente de profissões e ofícios que a modernidade empurra, cada vez mais, para a memórias idas. Reservadas aos mais velhos. Como é bom deambular por um século XX polvilhado de tradições ainda mais antigas. Em que cada negócio é uma continuidade da atividade dos antepassados. Gerações consecutivas honradas por dar seguimento à arte da família. De ferreiros a padeiros. De costureiros a leiteiros. Tudo com modos de antigamente. Aqui, o tempo não tem urgência de avançar. E como isto me seduz…
Perco-me nos encantos desta urbe, encostada no alto da montanha. Mardin tem muito para explorar, ver. E para onde ver. Em linha reta, a Síria está a menos de 15 quilómetros. Talvez seja aquele misto de cores quentes quando contemplo o horizonte, enquanto janto, novamente, no Seyr-i Merdin. Dizem, com acerto, que é o melhor restaurante da cidade. As vistas para o imenso vale são, de facto, soberbas. E amplas. O minarete à distância dos meus dedos é um marco perfeito na paisagem. E quando surge o chamamento do Imam… o Mundo parece perfeito na sua poesia.

Não irei pela gastronomia, ou estas linhas não teriam fim. Nem pela diversidade – grande, porém ainda não se compara à mediterrânica – mas pela genuinidade e intensidade dos belos sabores que tanto me cativaram. Sobretudo a arte de cozinhar vegetais.
Um destino nunca é como o imaginamos. ‘Conheci’ Mardin há uns 15 anos, numa foto que me obrigou a promessa de a visitar um dia. Esse momento chegou. Não sei se a realidade é melhor ou pior do que a sonhada. Apenas sei que não desejo partir. Não me canso. E se o desgaste de horas de exploração quase me obriga à rendição, logo me surpreendem e renovam as energias. Neste caso, senhora que apenas quer saber o meu nome e de onde venho. Antes de me ofertar doces e desejar posar comigo para o seu telemóvel.

Depois do derradeiro soar do minarete, a cidade como que adormece. O buliço diminui consideravelmente. A rua principal continuará movimentada, contudo as zonas ‘residenciais’ da parte velha ganham tonalidades de mistério. Como se, subitamente, mergulhássemos em contos das 1001 Noites…
É quando estou imbuído nestes pensamentos que sou interrompido por um estranho barulho. No escuro, algo me segue com um ruído indecifrável. Afinal, é apenas um ancião. Possante. E cambaleante. Tem óbvias dificuldades de locomoção, mas move-se com invulgar agilidade. Enquanto faz estranhos ruídos com o catarro que não o larga. Chega e desaparece do meu radar em menos frames do que os espectáveis.
Marilyn será imortal. Em Mardin, a diva é bem real. Não acreditam? Ora espreitem lá. Tem loja própria na qual vende produtos de beleza. Passa boa parte do dia a tirar fotografias com os curiosos que lhe aparecem constantemente. E a partilhá-las no instagram. Até já tem vídeos, de cuidada produção artística, no youtube. Pena o inglês lhe passar completamente ao lado.
Sei que tenho uma estranha atração por casamentos – dos outros – e não falta o encontro com os noivos da praxe. Nos jardins do hotel onde supostamente se captam as melhores imagens da cidade velha. Deveria ter voltado à hora do lusco-fusco, contudo prevalece o prometido jantar com Gulè, cuja história contei no artigo anterior do Bornfreee.
A diretora de escola primária é muito ciente das suas responsabilidades sociais, como o indica ter prescindido de férias para que se torne possível que 15 crianças refugiadas sírias possam aprender turco, para mais fácil e rápida integração no país.
Sem ainda o saber, cruzei-me com uma dessas crianças. Em mesquita. Brinca com um dos seus primeiros amigos. Num eterno jogo ‘papel, pedra, tesoura’ que aprecio por longo tempo. Até que o seu jovem parceiro, ciente da minha atenção, começa a fazer piruetas no chão. A cada gesto acrobático, vem espreitar as minhas fotos. Gesticula o seu desagrado e repete o número artístico. Uma e outra vez. Com a descontração que o islão permite nos seus templos religiosos.
Este ‘amor’ é o mesmo que encontro cravado em muitas portas – rendilhados em formas de coração – das irregulares casas, que formam um desajustado painel de azulejos urbanos, sem um padrão bem definido. Sobressaindo o creme que empresta à paisagem. O museu mostra-nos de onde vem toda esta herança
Mardin, onde convivem pacificamente vários credos, também se especializou em sabonetes artesanais que prometem os mais diversos benefícios para a saúde. O número de lojas que os vendem rivaliza com o de mesquitas, igrejas (sim, várias) e madrassas. E alguns bares que começam a emprestar a este destino interessantes alternativas culturais.
Sinto-me personagem secundária em película rodada em gigante mercado de especiarias. Mardin é assim: tem cor, sabor, textura e odores. Muitos. É uma nobre melodia antiga que nos seduz, que nos vicia…

21 Comments
Como eu gosto também de lugares que eram como antigamente, com gente simples que nos convida a entrar, mesmo sem falarmos a mesma língua. E essa Marilyn turca, que achado, quase tão interessante como o menino a brincar, a diretora que passa as férias na escola e os músicos amadores. Adorei estes momentos contigo.
Ruthia, tenho saudades de mais Mundo como “este”… Por isso o vou procurando, não importando a distância a percorrer. É capaz de ser velhice :)))) mas nada há no mundo como o ‘genuíno’ e a defesa dos nossos costumes e legado histórico. Beijinho e ótimas viagens…
Que bela cidade, que belo texto! Acho que já te comentei, mas o jeito que você escreve é tão poético, consegue fazer com que eu desacelere da loucura do dia a dia e me sinta no destino com você!
Gabriela, assim deixas-me sem palavras 🙂 Obrigado. Do coração. E se o efeito foi esse… mais feliz ainda 🙂 Beijinho e boas viagens…
Parar para ler os teus textos é um viajar sem sair de casa .. fantástica a forma como transportas o mundo para a escrita e fotos 🙂
Maria Pereira, a ver se me fazes corar?? 🙂 É isso? Um prazer ENORME saber-te regularmente por “aqui”… saber que o Bornfreee, de alguma forma, dá ainda mais cor e intensidade aos teus dias. Beijinho e obrigado…
Que relato gostoso de uma experiência única. Adorei. Obrigada por compartilhar.
Obrigado EU por ler, Andrea 🙂 Beijinho e boas viagens…
Que relato gostoso de uma experiência única. Adorei. Obrigada por compartilhar.
Que legal o lugar e a descrição, Rui. Demais a experiência. Os videos no post ficaram muito bons.
Edson, os vídeos, curtos, são experiência para tentar dar um sabor extra aos relatos 🙂 Obrigado pelas palavras. Grande abraço!
Adoro seus textos. Suas palavras tem o dom de me hipnotizar e me fazer viajar para lugares que nunca nem imaginei. Agora já posso dizer que adoraria conhecer Mardin! 🙂
Quanta honra ler isso, Niki. Obrigado – de coração – pelas palavras. Acho enorme honra e privilégio poder ‘transportar’ alguém para dentro da nossa história. Obrigado, beijinho e boas viagens…
Que belo relato Rui. Sinto como se estivesse viajando com você. Seus textos me inspiram. Muito obrigada! Você viu muitos turistas nessa região?
Abraços.
Obrigado, Giulia 🙂 Simpatia, as tuas palavras. Na verdade, nestes dias apenas me cruzei com um casal do Canadá… mais um motivo de interesse para explorar a região, o facto de ser mais do que genuína 🙂
Rui, adorei ser transportada para este lugar tão desconhecido turisticamente. E suas palavras cheias de sensibilidade tiveram o dom me transportar para lá. Thanks for the ride!
Obrigado eu pela leitura e comentário, Marcia 🙂 beijinho e boas viagens…
Preciso voltar a Turquia para conhecer o Curdistão. Te recomendo um ótimo livro que fala sobre a tentativa de ¨independência¨ curda e a guerra na Síria. Uma novela real sobre dois sírios que se encontram durante a guerra e vivem momentos tensos e também amorososos. Lua de mel em Kobane, https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/12/cultura/1520860609_229592.html
Excelente sugestão, Lucila. Na verdade, já me tinham falado do livro. Ao segundo aviso, é melhor pensar nisso a sério 🙂
Que texto maravilhoso!!! A fazer jus a todo o ambiente que se vive em Mardin!
De tão bom e poético somos transportados para lá e lá queremos ficar!
Grande abraço, Rui!
Clara, não vejo hora de voltar… ADOREI Mardin. Conheces?