“(…) Em Paris chovia. A criança ia sentada ao fundo dum coche, forrado de seda azul e via, através da janela embaciada, a cidade que, como a barriga dum peixe gordo, reluzia deslizante na chuva.
Via telhados pontiagudos, chaminés altas que se erguiam cinzentas e oblíquas entre as cortinas sujas do céu nebuloso, como se gritassem aos quatro ventos algo sobre segredos de destinos completamente diferentes e incompreensíveis. As mulheres andavam na chuva e riam, com uma mão levantavam a saia um pouco, os dentes delas brilhavam, como se a chuva, a cidade estrangeira e a fala francesa, tudo isso fosse uma coisa divertida e magnífica que a criança não era ainda capaz de compreender. Tinha oito anos, estava sentada com ar sério na berlinda, ao lado da mãe, em frente da camareira e do preceptor e sentia que tinha uma tarefa. Todos observavam o pequeno selvagem que vinha de longe, da floresta, onde viviam os ursos. Ele pronunciava as palavras francesas atenta, escrupulosa e cuidadosamente. Sabia que falava em nome do seu pai, do palácio, dos cães, da floresta e da pátria que deixava para trás.”
Sandór Márai – poeta e dramaturgo húngaro –, in As velas ardem até ao fim