Contava-se que, num tempo inicial, voavam dragões famintos que devoravam tudo quanto lhes adoçasse as entranhas zangadas.
Contava-se que, devastadas as coisas todas, os dragões haviam perdido a capacidade de voar e haviam parado exaustos um pouco por toda a parte. Arfavam e empederniam. Dizia-se que, de tão grandes e espessas peles, haviam radicado como montanhas de boca aberta. Passados infinitos séculos, alguns fumegavam ainda. Algumas bocas, no resto da raiva que continham, cuspiam fogo, já como dragões de pedra. Bichos gordos absolutamente feitos de pedra. Era engraçado olhar para as montanhas da Islândia e imaginar dragões acotovelados. Gigantes e cansados, mas talvez ainda ferroando-se e chamuscando-se uns aos outros por dentro. Culpados e culpando-se de terem tido tanta gula e tanta incúria.
Valter Hugo Mãe in A Desumanização