É, de facto, um ruído estranho. Soa a embate seco. Um barulho indecifrável que nos surpreende. Ao sair de um supermercado penso comentá-lo com uma metáfora quando o agudo espanto de Carla e Marcos direcionam o meu olhar para o exterior: é o caos! Há gente a correr. Pessoas que gritam. Sobra quem soe atordoado. Uns tentam ajudar, outros ficam como nós, inertes. Surpresa e estupefação. Há pedaços de automóveis por todo o lado. Destroços que polvilham boa parte da rua. Ainda não assimilei o cenário quando uma viatura toma conta de todas as atenções. Incendia-se.

Presumivelmente roubado, um carro é dirigido a alta velocidade e em contramão, apanhando duas viaturas. Em diferentes momentos. Embate na primeira. Não satisfeito, recua um pouco, muda a trajetória e acaba enfiado na segunda, perante o meu estupefacto testemunho. Agora já não anda. Nem pega. Mas fumega. E as chamas vêm logo a seguir…
A mulher no seu interior já se tinha libertado do airbag que a protegeu. Instintivamente, começa a correr com a vontade de uma final olímpica. Num ápice, desaparece.
Como nos filmes, a polícia chega instantes depois. Vem igualmente em contramão. Neste caso, em ritmo moderado. Supostamente, já vinha em sua silenciosa perseguição, penso.

Em menos de dois minutos – ‘cronometrados’ – quatro artérias são bloqueadas por 12 carros da polícia. Mais um minuto, chegam dois automóveis à paisana com detetives (os coletes, identificam-nos). Aparece também polícia em bicicleta. E, finalmente, dois veículos de bombeiros que vão dar conta do fogo que ameaça alastrar e promover um cenário ainda mais grotesco.
Boquiabertos, já no passeio exterior do edifício, na linha da frente de um filme de ação, vemos detetives a arrancar. Com aquele ímpeto que deixa rastro de marcas de pneu no asfalto. E odor a borracha queimada a perfumar o ambiente. As bicicletas seguem-nos. Ou tentam. Não entendo. Vão todos em sentido contrário à fugitiva…
O condutor do segundo veículo atingido desaparece. No meio do caos, perdemos-lhe o rastro. Já a primeira vítima não sai do carro. Só mais tarde, quando amigo a vem ajudar, o abandona. Antes das pernas lhe falharem e se desfazer em choro no seu reconfortante e longo abraço.
Não ouço “Take 1… and… ACTION!!”. Demoro a processar que vivo na pura realidade. Está a acontecer neste momento. AGORA. E na cidade que no século XX ficou famosa pelo crime: Chicago. Recordam Al Capone?

Há figuras que o cinema cria. E os mitos que a sétima arte retrata. Alphonse Capone é um deles. ‘Scarface’ (apelido ‘intimo’, devido a cicatriz no rosto) espalhou o terror pelos Estados Unidos e isso granjeou-lhe fama mundial. O implacável gangster que foi pesadelo de muitos nas décadas de 20 e 30 jaz agora, em paz (??), com outros sete familiares no cemitério Mount Carmel, nos arredores de Chicago. Estamos perto. Imperdível uma visita ao seu túmulo.

Repousa junto de muitos milhares de compatriotas italianos, num enorme cemitério com vasta coleção de respeitáveis e proeminentes foras da lei. No registo dos ‘famosos’, destacadas figuras religiosas – é conhecido pelo ‘mausoléu dos bispos -, todas de origem anglo-saxónica. Ficam claramente a perder em termos de número, pois os vilões abundam por estes lados.
O crime organizado ‘controla’ agora o cemitério, com mais de 225.000 defuntos: além de Al Capone e dos seus irmãos Frank e Ralph, podemos encontrar virtuosos da estirpe de ‘Machine Gun’ Jack McGurn, Frank Nitti, Vincent Drucci, Sam Giancana, os irmãos Genna (Sam, Vincenzo, Pete, ‘Bloody’ Angelo, Antonio e Mike ‘The Devil’), António Lombardo, Dean O’Banion, Frank Rio, Roger Touhy, Earl ‘Hymie’ Weiss… BATTISTA (upssss… surprise!!). Sem réstia de dúvidas, Tudo bons rapazes…
Filho de barbeiro e costureira que emigraram de Itália em 1894, Capone foi expulso da escola aos 14 anos por agredir um professor. Meses depois, em Manhattan, juntava-se ao grupo de Frank Yale. Mais tarde, mudou-se com a família para Chicago, para ser o braço direito do mentor de Yale, John Torrio. Alvejado o líder, tomou conta dos negócios e expandindo-os a outras cidades. Com a sua visão e determinação, rapidamente avançou no mundo ‘empresarial’.
Com um quarto de século revelava-se um ser humano frio, violento. Sem escrúpulos. Esteve nomeado para o ‘Homem do ano’ da Time Magazine. Acabou por inspirar literatura e cinema, sendo uma das figuras cuja vida mais inspirou na sétima arte.

Controlava informadores, locais de apostas, casas de jogo, bordeis e clubes noturnos. Destilarias e cervejarias. E o contrabando. Chegou a faturar 75 milhões de euros por ano, durante a lei seca. Foi dos que mais a desrespeitaram.
Bon vivant, foi igualmente um exemplo de promiscuidade, o que lhe valeu contrair a sífilis. Em 1931, foi condenado a 11 ‘natais’ na prisão por fuga aos impostos. Oito anos mais tarde, a pena foi revista em virtude do seu debilitado estado de saúde: sífilis e sinais de distúrbios mentais que o levaram definitivamente para Mount Carmel em 1947.
Num país em que tudo é explorado turisticamente até à exaustão, estranho um certo alheamento a uma das figuras mais emblemáticas da terra. Mesmo que por motivos poucos religiosos…
Não encontrámos muitas referências a Al Capone em Chicago. Pelo menos tantas quanto esperava. Mas há um tour guiado aos ‘intocáveis’, em carrinha preta em estilo antigo que retrata os veículos da altura. Uma forma distinta de conhecer a história que, sem dúvida, marcou a ‘windy city’, a cidade do vento.
Após algumas voltas, encontrámos a sua sepultura. Simples. Sem grandes floreados. Incógnita em tranquilo lugar. Surpreendentemente sem testemunhas, pudemos usufruir do momento. Após uns 10 minutos a solo, duas outras viaturas aproximam-se. Alternadamente. A imponência e cor do nosso carro – preto, vidros escuros – e o à vontade com que socializamos com Scarface, parecem o motivo para que nem tenham parado. Afugentados num ápice.
Carla vai a caminho dos seis meses de gravidez. Continua em negociações com Marcos, seu marido, pelo nome do varão. Já que visitamos o ‘padrinho’, aproveitamos para lhe pedir ajuda. Em vão. Ainda não se decidiram…
Três moedas jazem na pedra tumular de Al Capone. Pedido de boa sorte? Fortuna? Irónico pagamento de dívida? Não interessa. Deixamo-las, também, em paz…

2 Comments
Interessante texto: presente e passado! Curioso como uma figura violenta está envolta em certo glamour! Como pode?!
Que louco presenciar uma cena de cinema em tempo real pelas ruas de Chicago, uma cidade que está em meu radar para conhecer! Visitarei o túmulo de Al capone?! Será?!
Analuiza, dispensa um ‘assalto’, mas não percas o túmulo do Al Capone 🙂 É um cemitério repleto de gente ‘boa’ e bem conhecida lol