Zona inóspita da Arménia. Súbito pisca à esquerda, cambalear em estrada repleta de crateras e… vamos explorar! Manobra repentina que surpreende o grupo Bornfreee resulta apenas em ligeiro grito, pela surpresa da manobra. Ninguém se queixa. Há um assombro no horizonte que logo nos hipnotiza.
Um monte de ruínas. Percetíveis à distância e cada vez mais definidos, com a nossa aproximação. Enorme portão enferrujado, fechado a cadeado. Tento transpô-lo. O nosso barulho provoca alerta e um militar espreita à janela. Desaparece. Vamos ter problemas…
Antes que nos barre a entrada, finjo não perceber que estou em anunciada propriedade do exército e avanço. Mais do que perguntar, agir. Tiro logo uma ou outra foto a este ‘santuário’, não vá ser impedido de o fazer quando indesejada companhia chegar. Diante de nós, um misterioso aeroporto abandonado…
Em menos de um minuto, o militar já está junto ao grupo que, entretanto, já transpôs o portão e está dentro do complexo. O soldado terá quarenta e muitos anos. E não fala inglês. Está desconfortável com a nossa presença. Confuso quanto à forma como correr connosco, explicando, como pode, em língua que nos é completamente estranha, a natureza da infraestrutura.
Vamos comunicando por gestos. Tento que perceba que, mais do que lamentar a degradação do complexo, estou embeiçado pela sua beleza. Tem algo de poesia, este abandono.
Quando pensamos que, inevitavelmente, não há alternativa e, renitentemente, nos dirigimos à saída, o nosso amigo solta um amigável e inesperado “coffee”? Olhares de espanto. Reações contidas de entusiasmo infinito. Nem hesitamos! Oportunidade única de investigar o velho aeroporto por dentro.
Estamos num um filme futurista, pós-apocalíptico. Fosse eu realizador e este cenário seria o protagonista. Todo o filme em torno desta soberba infraestrutura. Merece o esforço.
Percebemos que vive aqui. Sozinho. Numa pequena cama estilhaçada. Acompanha-o apenas uma tv minúscula, com imagem de má qualidade. Outra presença de humanidade? Apenas um poster de uma esbelta asiática em decente bikini. Será aconchegante companhia.
O café é feito numa resistência antiga. Tem de trocar os fios numa parede para a ligar. Percebemos que tem dois filhos. E que a sua solitária missão ali tem anos. É complexo militar desativado. Funcionou essencialmente na guerra de Nagorno Karabakh, que terminou há… 20 anos (até que ressuscitou em 2015). Está perto da fronteira com esse semi-país que deixou de integrar o Azerbaijão, mas que também não quer ser Arménia. E o Mundo ainda não se entendeu quanto ao seu reconhecimento internacional.
Tem um ar verdadeiramente amigável. E aprecia tanto a nossa companhia como nós nos deliciamos com a sua e esta experiência. Mais genuína, impossível. Isto não vem em qualquer roteiro de viagem. Nem se pode planar.
O café transpira borra. Um sabor a roçar o execrável. Seria desumano sacrifício toma-lo, não fosse este estado de enfeitiçamento em que me sinto. São estas inesperadas e improváveis experiências que alimentam a minha paixão pelas viagens. É nestas pequenas coisas que me sinto pleno.
Com a sua permissão, faço uma vistoria ao lugar. Vigiado por um minúsculo feroz e ruidoso canino, que se esconde atabalhoadamente mal me dirijo a ele. Não tem pinta de herói. Mas é fofo. Há sala de embarque. Controlo de check-in. Placas informativas em língua que não entendo. Tudo num delicioso caos. Um bendito monstruoso abandono. Quantas histórias esconderá? Aqui sente-se ‘energia’ especial. Não necessariamente positiva.
Ceder espaço ao imprevisto tem-me proporcionado algumas das melhores experiências de vida. A mesma atitude em viagem e no dia-a-dia: uma certa aversãozinha ao “tudo organizadinho e planificado ao milímetro”. Não, não é para mim. Nunca foi. Jamais será.
O nosso amigo posará connosco para a eternidade. Os sorrisos são largos e as despedidas cordiais. O seu braço acenará no ar até que desaparecemos no horizonte…
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on pinterest
Pinterest
61 Comments
Adorei a história. Por essas e outras que não “engesso” os meus roteiros. O acaso pode ser tão mais legal (“fixe”) do que o planejado. Ótimo post!
É isso mesmo, Fernanda Souza. Obrigado pelo interesse 🙂
Me senti num capitulo interessante de um livro, onde várias coisas que o autor cita, me identifico. O inesperado é sempre enriquecedor. Adorei! Continue desbravando e se interessando pelo mundo. Saludos.
Melissa Lima, obrigado pelas palavras 🙂 É bom ver que estamos em sintonia. Beijinhos…
Post muito interessante! A descontração da vida… dificilmente isso aconteceria em uma viagem minha! Bom para pensar! Meu marido vai adorar ler este texto. Parabéns! Abs!
Ana Paula Fidelis, se for preciso algo mais para “inspirar” ao improviso, avise 🙂 Beijinho e boas viagens!
que baita história fantástica! realmente os lugares não planejados sempre apresentam grandes surpresas, e normalmente boas surpresas! parabéns pelo artigo, me senti lá dentro do local também!
Obrigado, Viagem LadoB. Acho que é o “elogio” melhor de se ouvir… quando os “desconhecidos” estao ao nosso lado nestas historias…
Eu sou do tipo que faz planos… Aí os imprevistos vêm (porque eles sempre vêm) e fazem tudo ficar mais emocionante, autêntico e divertido! 🙂
Nana Castelo Branco… um dia experimente fazer TUDO ao contrario 🙂 Deixe o “imprevisto” liderar a viagem… e depois logo se ve 🙂 Estou no Canada e tenho muitas dificuldades com a acentuaçao. As minhas desculpas 🙂
O que me surpreende sempre em qualquer viagem é a humanidade que encontro. Na sua história um café tem o poder de dar vida nova à um lugar esquecido e um sorriso amigável deixa uma marca inesquecível na memória e no coração. Parabéns pelo post! Abs Dani Bispo
Concordo em absoluto, Danielle 🙂 Obrigado pelas palavras. Beijinho, boas viagens e excelentes encontros…
Um encanto sua história. Eu sou uma pessoa um pouco metódica, daquelas que conferem 20 vezes o roteiro por exemplo, mas aprendi que ao viajar as melhores histórias e momentos acontecem no imprevisto!
Sim, Michele Raggio. O imprevisto… salzinho gostoso nas nossas vidas 🙂 Beijinho e obrigado pelo interesse.
Parabéns pelos post. Gostei muito quando diz que são estas inesperadas e improváveis experiências que alimentam a minha paixão pelas viagens, concordo com você. Deve ter sido muito gratificante.
Ana Carolina, muito interessante mesmo. Descrever mais detalhadamente toda a experiencia quase que daria um romance :)) beijinho
Que história bacana! Consegui vivenciar um pouco da sua experiencia e como a Melissa comentou, me senti dentro de um capitulo de um livro. Lindo texto!
Adorei o seu jeito de escrever, tem um ar de mistério. Bem diferente do que se vê por aí! E realmente, ter tudo planejado muitas das vezes nos tira experiências que seriam bem mais genuínas!
Muito oobrigado pelas belas palavras, Larissa Pereira. Ainda bem que gostou da partilha. Beijinho
Que demais! me levou a viajar contigo por esses súbitos e momentâneos imprevistos. Eu acho que é a sim que deve ser feita uma viagem que se transforma em algo pra toda vida. Abraço!
Concordo, Rui.
Para nós, o imprevisto é parte fundamental da viagem.
É o aceitar o convite de um estranho para tomar um café, ou de outro viajante para mudar a rota, conhecer um país que não estava nos planos, que torna tudo mais interessante…
Também achei os armenos de uma hospitalidade sem igual (na verdade, toda essa região que compreende Irã à Geórgia é maravilhosa).
Não podia estar mais de acordo, Fernanda 🙂 Esta região tem gente verdadeiramente fantástica, super-hospitaleira. Ficou vontade de sobra de voltar… em breve 🙂 bjkss e boas viagens…
As surpresas das viagens são a melhor parte.. mas confesso que adoro uma viagem toda programada, porque fico com a impressão de estar perdendo algo, mas aos poucos estou deixando pelo menos dois dias sem programação e estou tendo belas surpresas.
Aline, depois de te ‘soltares’, acredita que vais dar outro valor ao imprevisto 🙂 Boas viagens…
Que demais! No inicio pensei que ia acontecer alguma treta, ou pelo menos um “saiam fora daqui”, mas surpreendentemente, aposto, que vocês fizeram uma boa companhia para o soldado solitário. 🙂 Show de história.
Itamar… foi mesmo isso. E sem sabermos uma única palavra da língua do outro. Dos momentos mais belos que tive em viagem. Memorável…
sempre quando faço os roteiros deixo bem “aberto”, com espaço para descobrir os locais sem pressa..fazer tudo corrido e planejado n deixa espaço para esses imprevistos e surpresas
Nem mais, Angela. E, pelo que vejo, também tens feito belas descobertas…. Continuação de boas viagens…
OLa.
Que história incrível. Adorei seu jeito de escrever.
Obrigada por compartilhar.
Abraços
Thais
Obrigado pela simpatia, Thais 🙂 Beijinho e boas viagens…
Oi Rui, gosto de ler seus posts porque me inspiram a ser um pouco “menos organizadinho” e esse fala justamente sobre isso. Um dia chego lá, pelo menos estou tentando mudar!
Leo, é questão de ir treinando 🙂 O “improviso” e o “imprevisto” são condimentos fundamentais nas minhas viagens. São ingredientes libertadores… :)))
Ainda ontem estive a ver voos para a Arménia. Será um sinal? 😉 eheheheheh
E que tal, Carla? Já estão garantidos? :)))
Que história lindamente escrita! Me senti dentro de um livro. Viajar é sempre uma lição de vida é aprendizado.
Nem mais, Lulu 🙂 Beijinho e boas viagens…
Que belo post, adorei as dicas, adoro as surpresas que a viagem nos traz.
Rafaella, a “surpresa” é um dos melhores ingredientes de e em viagem… 🙂
Adorei a história! Certamente renderia um ótimo livro, viu?
Acredito que é uma bela história para partilhar. A pensar na sua sugestão, Eloah… 😉 Beijinho e boas viagens…
Isto é maravilhoso…e um café execrável ehehhe Também tenho uma aversãozinha ao tudo organizado e planeado ao milímetro, mas isso é uma luta que travo por vezes sozinho. O poster da senhora está está magnífico 😉
A senhora é uma fantástica companhia, Francisco 🙂 Foi dos imprevistos mais recompensadores que tive em viagem. Grande abraço!!
O melhor das viagens é mesmo o imprevisível e a convivência com as pessoas. Adorei a história,não podia ter sido melhor!
Obrigado, Ana. Foi dos momentos mais especiais que recordo em viagem…
Adorei a sua forma de escrever! Bastante cativante! Quanto ao café, se é do estilo que penso que é, é um café que deve ser tomado com muitaaaaa calma… Na Grécia também têm este tipo de café, e há que o deixar assentar antes de o tomar, senão as probabilidades de o detestar são gigantes. E claro, nunca se o deve beber até ao fim, senão…
Tens razão, Gil. Mas, neste caso, até beberia ‘terra’ 🙂 O meu ‘amigo’ merecia o esforço. Obrigado pelas palavras. Abraço e boas viagens!
Identifico-me imenso quando diz que há algo de poético no abandono. Há algo nos cenários de abandono e destruição que me fascina, talvez seja por ser isso mesmo -poesia!
Nas minhas viagens cada vez mais sinto necessidade de encontrar um equilíbrio entre o planeamento e o improviso, e deixar espaço para que a surpresa aconteça!
Parabéns pela escrita que nos leva como se de um guião de um filme se tratasse!
Obrigado pelas palavras, Janete 🙂 Ainda bem que gostou. Aconselho, então, libertar mais algum e espaço para o imprevisto… encanta muito mais mesmo :))
Me senti dentro um filme, aliás, algo me lembrou o militar do filme Vodka Lemon. Vocês já o assistiram?
Luciana, não vi mas fiquei com curiosidade 🙂 Vou espreitar…
Oi Rui,
Gosto muito das suas narrativas. Armênia deve ser um país culturalmente muito interessante, deu até vontade de conhecer!
Obrigado, Marlise. Arménia é um país realmente muito, muito interessante. Aconselho visita demorada… 🙂
Sabe que temos o costume de fazer as viagens mais bem programadas, sem muito espaço de manobra. Acho que até por viajarmos com nossa pequena, acabamos não sendo tão aventureiros. Ainda precisamos melhorar nisso…r s
Um dia será a pequena a puxar por vocês 🙂 Importa é que lhe dêem “Mundo”, seja ou não mais organizado. Grande abraço!
Mais uma vez (sinto que digo o mesmo de cada vez que aqui venho deixar um comentário) adorei o relato. Transportam-nos sempre para o que viveste, para os lugares – e quase se sente o sabor «execrável» do café. Nunca tive experiências destas. Próximas, talvez, mas nunca assim. Persegue-me um receio (ridículo) de ser inconveniente para as pessoas, o que acaba com qualquer possibilidade de ter este tipo de vivências. É de feitio, acontece-me lá fora e aqui. Tenho procurado mudar isto, aos poucos. A verdade é que as pessoas são sempre mais disponíveis do que aquilo que penso à partida.
Muito obrigado pelas palavra, Ana 🙂 Assim deixas-me sem jeito… lol Aconselho-te a repensares o registo: o melhor das viagens são MESMO as pessoas… Se não potencias o contacto, natural, curioso, vais perder a oportunidade de enriquecer as tuas vivências. Acredita, toda a gente gosta mesmo de ser “incomodada” por quem viaja e tem curiosidade na partilha… Boas viagens!
Que história magnífica, é exactamente está a magia das viagens. Confesso que Eu sou um bocadinho paranóica com a organização, mas sem dúvida que ser mais descontraído tem as suas vantagens ? artigo excelente como sempre.
Esta é a melhor parte das viagens, quando os lugares e as pessoas nos surpreendem, especialmente quando não está planeado. É isso que adoro.
Que experiência, amigo Rui! Levaste-me nas tuas palavras e eu deixei-me ir. Isto sim! Isto é escrita de viagens. Só conheço um contador de histórias de viagens com este nível, como é Mulher, és oficialmente o meu blogger macho (é redutor mas se te chamo escritor ainda me dás uma trolitada) preferido.
Grande abraço
:)))) Quanta honra, companheiro Nelson. Vindo da tua exigência, um elogio ímpar 🙂 Grande abraço para ti e para as tuas princesas…