Quando se navega entre o Ruanda e o Congo e nos maravilhamos em primitiva aldeia…

São horas a rasgar as tranquilas águas do lago Kivu, que separa o Ruanda do Congo. Navegamos em altiva casca de noz sem perder da vista uma ou a outra margem. Até que decidimos aproximar-nos de um primitivo lugarejo. Um lento desvio que logo cativa a atenção de crianças. Em segundos, são dezenas a correr para nos receber.
Um pé em terra firme e logo somos envolvidos por incontáveis pequenos seres que se atropelam no entusiasmo de connosco comunicarem. Com excitadas palavras que não entendemos. O sonoro alarido alerta imediatamente toda a aldeia e a nossa presença deixa de ser incógnita. Estamos em Nyamirundi.
Paramos para exercitar o corpo. São muitas horas de contemplativa paz. As pernas exigem ação. E o estomago também. Mente e corpo unidos no mesmo objetivo: almoçar! Bom, pelo menos tentar. Mas aqui não é fácil…
A aridez da placa do ‘restaurante’ Turebe indicia que não teremos sorte. Com efeito, um quarto escuro, sem mesa e apenas dois baixinhos bancos corridos. Impróprio. Tudo demasiado empoeirado. E sem qualquer sinal aparente de comida. Siga.

Sempre rodeados de rasgados sorrisos, avançaremos para o alto do povoado. Até que descobrirmos um exclusivíssimo bar com o seu nome: Nyamirundi. Lugar surpreendentemente agradável. Limpo. Bem tratado. Com sombra. Árvores e jardim. E até um modesto palco, para raras atuações.
Teremos direito a um fantástico pão, grandes cervejas e ‘deliciosos’ minúsculos peixes fritos. Na verdade, uns ‘jaquinzinhos’ a boiar em saturado óleo. Maravilha de almoço. Lamberemos tudinho, com a ajuda ‘preciosa’ de novos amigos, que atacam, vorazmente, mal recebem o nosso hospitaleiro sinal para o banquete. Somos os únicos visitantes ‘estranhos’ em muito tempo. Atendimento com honras de Estado neste incógnito povoado, sem outro acesso além do rio.
Na cozinha-cubículo acendem-se as brasas sem fósforo ou isqueiro. À moda de muitos séculos. Minutos a serem mimadas para crescerem até as chamas envolverem a panela, bem fornecida. (Literalmente) Pequenos peixes do lago a apurar.

Pergunto se têm limão. Parece que não. Reativo, um dos improvisados cozinheiros sai a correr e regressa minutos depois em igual ritmo. Com dois citrinos. Rego o petisco e convido o ‘chef’ a provar. “Huuummmmmm… Delícia”, terá comentado. Pelo menos, foi isso que a sua expressão fácil traduziu.

Os restantes presentes juntam-se, antes mesmo de concluirmos o sincero convite. O limão é aprovado e os pratos ficam limpos em instantes. Convívio interessante nos limites possíveis: sempre que imperam as barreiras linguísticas, abraçamos gestos expressivos e sons assertivos, uma boa ajuda para momentos de singular e bem-disposta comunicação.
Delongamo-nos um bom par de horas, mas, ainda assim, somos esperados fora do recinto, vedado. Algumas vigilantes crianças que, num ápice, se multiplicam. Há que alertar os amigos. Afinal, não se sabe quando voltam a ver ‘brancos’ por aqui.
Acompanham-nos, empolgadas, até ao remendado e escorregadio ‘cais’. Não resistimos e demoramo-nos eternamente no percurso. Entramos em brincadeiras sem idade. É tempo de todos sermos crianças. Pedem-nos fotos. Deliram ao reverem-se em imagem. Posam com orgulho. Quem antes chorou de inexplicável horror por ver forasteiros de pele branca (nas lendas africanas, muitos ‘feiticeiros maus’ têm a minha cor de pele), já sorri, ainda que timidamente, para a fotografia.
Vigoroso e inesperado aguaceiro junta-nos sob improvisado teto. Meia hora de violento dilúvio. Que leva tudo o que está solto na encosta onde está plantada a rudimentar aldeia.

A multidão levar-nos-á de volta ao barco. As três canetas que antes distribuíra souberam a pouco. Não sei se viverei algo tocante e assim profundo nesta viagem. Pego no arsenal que me resta – umas 30 esferográficas – e tento distribuir, equitativamente. A crianças, jovens e seus pais. Que se amontoam na luta por um “cadeau” (presente) valioso nesta parte do planeta.

Estão todos na água. Vestidos. Com os braços, incansáveis, em acenos vigorosos. Que persistem até desaparecermos no horizonte… Não sabem, mas deram-nos muito mais do que aquilo que receberam.
As seis horas de puro deleite a rasgar as serenas águas do Kivu prosseguem. Junto à margem do Ruanda… quando não acompanhamos a do Congo, mais ‘sui generis’. Montanhas agrestes e escarpadas, com agricultores em declives arrojados. São regulares os acenos de novas crianças que nos vão acompanhado em loucas corridas nas acidentadas margens.

O dia vai definhando e o lago ganhando surpreendente vida. E expressivas e quentes cores. Fim do dia de trabalho. Muitas canoas – das mais diversas formas e feitios – rompem as águas no tráfego natural de quem volta a casa. O ambiente é idílico e lamento cada segundo que nos aproxima do fim da jornada. Ciangugu está à nossa esquerda. Uma ponte separa o Ruanda de Bukavu, Congo. Ninguém diria que estamos tão perto do Inferno que os capacetes azuis da ONU não conseguem controlar…
38 Comments
Olá Rui,
Estou de viagem marcada para Guiné Bissau. Tenho a impressão de que vou encontrar algo muito parecido com o que você narra aqui por lá. Você já esteve por lá?
Abs, Marlise V. Montello
Marlise, AINDA não estive na Guiné Bissau. Mas creio que, de facto, vais experienciar situações bem parecidas 🙂 Depois quero ler tudinho nos “meus roteiros” 🙂 Beijinho e boas viagens…
Rui, adorei a história. Tenho muita vontade de explorar esta parte de África. Acho que deve ser uma autêntica descoberta. Os olhos destas crianças enchem-me a alma.
Carla, África tem, de facto, um magnetismo incrível sobre nós. E é uma das poucas zonas do planeta onde a vida ainda é… como era, no melhor dos sentidos. Beijinhos e boas explorações!
Que post! Amei. A África é um continente surpreendente. Viajar é viver novas experiências!
Nem mais, Alexandra 🙂 Beijinhos e boas viagens..
Que linda experiência… imagino que nunca mais vai esquecer essa aventura nesse restaurante perdido no meio do nada…
É isso mesmo, Camila. Há experiências que perduram nas nossas memórias de viagem. Esta é uma delas 🙂 beijinho e boas viagens…
Olá, Rui. África é mesmo um continente marcante e todas as visitas, especialmente a países como estes, são de facto extraordinárias. Fazem-nos rever a visão que temos do mundo. Coisas tão simples que, para nós, não têm quase valor, por aqui são verdadeiros tesouros e oportunidades. Adorei o teu relato!
Obrigado, Marlene 🙂 E é mesmo como dizes: nada como as coisas mais simples para nos proporcionarem momentos de ouro… verdadeiramente valiosos.
um país marcado por uma história trágica e o sofrimento do seu povo, mas dá pra perceber que eles não perderam a esperança e o carisma, acho que teria uma imensa tristeza em visitar locais assim.
Precisamente, Flávia. Souberam, como poucos, reverter uma história trágica e de puro terror/horror. Beijinho e boas viagens…
Gente que soube e sabe todos os dias como superar a história trágica. Adorei sua sensibilidade ao lidar com a barreira linguística. Aquela coisa de falar com o coração.
Obrigado, Dayana 🙂 Beijinho e boas viagens…
Rui, suas crônicas são sempre uma estocada a alma, ainda mais nos confins de uma África devastada por exploração, guerra e miséria. Uma visita dessas e uma recepção calorosa como essa devem ser um combustível e tanto para continuar, não?
Nem mais, Francisco. Quando nos deparamos com situações destas é como um ‘renascer’ da alma, de volta aos primórdios. Ao que é realmente importante. Obrigado pelo comentário e grande abraço!
Um relato admirável, sobre aquilo que de mais simples existe. E que bom que é ser recebido com esse entusiasmo, poder saborear uma refeição em que o convívio é o prato principal e ter despedidas com gestos tão sinceros. Claramente uma experiência inesquecível, daquelas que nos marcam para sempre.
Ana, resumiste na perfeição 🙂 Obrigado pelas palavras. Beijinho e boas viagens…
Esse é o tipo de viagem onde aprendemos demais e mudamos para sempre. Imagino as sensações ao encontrar essas pessoas e ver um pouco da vida delas… Lindo relato
Obrigado, Renata 🙂 Um grande beijinho e boas viagens…
Olá, Rui! Adoro os seus relatos, me sinto viajando com você através das suas impressões. Suas viagens são sempre para lugares incríveis e diferentes. Adorei o post. Bjs
Obrigado, Viviane 🙂 Assim fico sem jeito… bjkssss e boas viagens…
Afinal, viajamos para termos a alma tocada, amaciada, modificada… texto tão sensível! Achei emocionante a maneira como você olhou e principalmente a maneira como você nos fez viajar para este isolado lugar, para conhecer estas pessoas tão distantes de nós… Tocante!
Além da atenção e da troca, me parece que você deixou outro presente: o delicioso hábito de comer peixinhos com limão! 🙂 bjs
Analuiza, só de pensar em peixinho e limão… babo-me 🙂 Obrigado pelas simpáticas palavras. Beijinho e ótimas viagens…
Que experiência incrível, Rui! E que fotos. Sempre que passo por aqui para ler seus textos viajo com você nas histórias e no seu contar. Ahh, tenho mais uma última coisinha a acrescentar: me leva na próxima aventura também?! Muito lindo!
:))) Alessandra, quanta gentileza. África é um Mundo à parte… O mais exótico, mais propício a histórias ‘diferentes’ e o que mais mexe com as nossas emoções. Beijinho e boas viagens…
Que legal essa viagem, uma experiência inesquecivel!Nyamirundi parece ser uma aldeia muito fofa, e os habitantes são bem receptivos! Parabéns pelo post.
Obrigado, Mapa na Mão 🙂 Boas viagens!
Maravilhoso texto e mais uma experiência incrível que só se tem quando em contato com o verdadeiro povo dos lugares que visitamos!E um peixinho frito com limão cai muito bem!
Se cai, Tina 🙂 Obrigado pelas palavras. Beijinho e boas viagens…
Fantástico como sempre Rui! Adorei ler e sentir me a viajar por África pelas suas palavras! (mas o que tem piada mesmo é ir eheh) E assim de aviva o bichinho de viajar e quer partir já para esse imenso e rico continente. E a comida parece me muito bem!!
Obrigado, Patrícia 🙂 Experimenta África… e ficarás viciada 🙂 bjksss…
Deve ser realmente muito curioso viver essa diferente cultura desse país! Obrigado pelas dicas, está um lindo texto e as fotos estão incríveis! Parabéns!
Obrigado, Robba. Abraço e boas viagens!!
Oi Rui.. adorei o seu relato, muito interessante. Eu ainda não conheço a África, mas gostaria muito de ir vivenciar essas experiências. Com certeza veria o mundo de outra forma. =)
Martinha… um dia que explores a África subsariana… vais ver o mundo com outros olhos 🙂 beijinhos e boas viagens…
Oi Rui, adoro seus textos, belo relato. Nós ainda vamos fazer uma viagem mais exploradora na Africa, deixa a pequena crescer.
Edson, não duvido que serão ótimas aventuras… e fico a aguardar para as seguir bem atentamente 🙂 Grande abraço!