A “nave” foi símbolo do orgulho comunista. Agora é ícone de degredo.

Visto de cá de baixo, de ponto intermédio da imponente montanha, não tenho dúvidas: é uma nave especial. Ali há marcianos. Ou houve comunistas. Estou pasmado com Buzludzha, marco da histórica e política búlgara.
Perdido nas centrais montanhas do país, Buzludzha está completamente desprovida de transportes públicos. Só de carro. Os últimos 10 quilómetros não são complicados, ao contrário dos dois últimos de subida íngreme, invariavelmente a pé. Vou parando para recuperar fôlego. Da escalada a um ponto a rondar os 1500 metros de altitude e do edifício que me vai insuflando a fantasia e desejo profundo de o explorar. Está quase…

Atingido o cume, fico a saber que há uma rota que permite subir de carro até aqui. GRRR!!! E que o edifício está fechado. Bem acantonado. Selado. No passado foram vários os pontos ‘encontrados’ para penetrar no edifício, mas em maio TODOS foram selados. E instalaram câmaras de segurança, dizem-me, mais tarde, para colocar um fim à depredação deste ícone. Não parece haver mesmo maneira de contornar este ‘drama’: vim cá para ENTRAR. Não para ficar à porta, a admirar Buzludzha. Estou quase a assumir o desespero da frustração quando o meu ávido olhar deteta luzes de lanterna dentro do edifício. HÁ UMA ENTRADA!!
Às voltas a todo este betão não encontro nada capaz de penetrar esta fortaleza. Mas tem de haver forma. Qual?? A resignação ameaça espreitar quando vejo alguém brotar da terra. Em fato militar. Ajudando depois um decidido vulto feminino a regressar também á luz.

Alexander é um russo de S. Petersburgo que tem a paranoia de explorar edifícios abandonados, principalmente militares. Tatyana, com quem vive há um ano em Sofia, acompanha-o nesta desafiante insanidade. Este projeto é político, mas enquadra-se perfeitamente no seu estilo.

Desta vez a entrada é malabarista. Um buraco mal-amanhado no chão. O corpo passa e fica apenas o nariz de fora do limite do chão. Depois, nova dificuldade, ao melhor estilo ‘jogos sem fronteiras’, embora com um obstáculo capaz de acabar, do modo mais doloroso, com a aventura pela Bulgária. Devo apoiar-me, firme, nos braços e parte do tronco até os pés assentarem em duas tábuas desengonçadas e atadas por uma fita magra e pouco consistente. ‘Equilibrada’ entre um rebordo na parede e uma espécie de estante metálica. Não devo olhar para baixo nesses três ou quatro metros. A queda de uns três metros é para cima de entulho de madeira e ferros com ar pouco fofo. Alturas, mesmo que pequenas, não são a minha praia. E as tábuas logo dão sinal de ceder com facilidade. Apoio-me na parede e atinjo o dito armário metálico, bem mais fácil de transpor, ou seja, descer.

Alexander pega na lanterna e leva-me por caminhos obscuros com água, lama, tábuas, ferro, todo o tipo de entulho e escadas de segurança bem duvidosa, degradadas e sem corrimão. A ansia de atingir o raro interior é assinalável. Subo dois andares e entro em campo: estou ESTUPEFACTO!
Este é um dos desafios para contar. Um lugar que celebra a derradeira batalha entre os aguerridos independentistas búlgaros, apoiados pelos russos, e as tropas otomanas, em retirada após ocupação de cerca de 500 longos anos.

Estamos em 1868. Vinte e três anos depois (1891), um grupo de revolucionários encontra-se neste pico emblemático para fundar o Partido Socialista da Bulgária, que derivaria posteriormente no Partido Comunista.
É, muito resumidamente, neste contexto que nasce a “nave”, o histórico monumento. Um sumptuoso e arrojado edifício que também albergava congressos. Um investimento incalculável, obsceno, e operacional em 1981. O muro de Berlim caiu oito anos mais tarde, em 1989, e todo o bloco soviético se desmoronou de seguida. Não tardou, este local ficou simplesmente abandonado.

Encontro vários murais em avançado estado de degradação. O destaque vai para os inspiradores do socialismo. Engels, Marx e Lenine, lado a lado, testemunhas de um passado de Estado. Entretanto derrotado pelo vandalismo – ou arte – em forma de grafiti. Um presente surreal. Escadas destruídas. Vigas danificadas. Teto parcialmente ruído. No centro, um amplo e impressionante escudo comunista. Também a precisar de reforma. Aqui sobram sinais de apocalipse. E de pura arte, agora decadente. Aleksander está tão entusiasmado quanto eu. E não se importou de voltar a entrar, para satisfazer o meu desejo.
As vistas do andar de cima são imperiais. Até cá dentro fica a sensação de estarmos numa nave. A paisagem é bela e majestosa. Há uma torre ao lado. Ainda mais alta. Encontrámos uma porta retorcida no chão – certamente arrancada por quem cá veio antes – e agora, no seu lugar, uma bem mais robusta. Impossível transpô-la. Não se move. Nem dá ideia de ceder um milímetro que seja. Já tenho o bolo, mas vou ficar sem cereja…
O Mundo é fértil em destinos insólitos. Este parece um trono que vigia os vales do nosso horizonte, dominados na antiguidade pelos reis trácios, que deixaram monumentos fúnebres agora Património Mundial da UNESCO. Ficção pura na cordilheira dos balcãs.
O ovni mais famoso do comunismo está desgastado pelo tempo e pelo vandalismo. Como é controverso na sociedade búlgara, é escasso o interesse em reconverter Buzludzha em símbolo turístico. Fico assim com sensação ainda mais firme de ter viajado no tempo, para um período da história de complexidade ao nível deste projeto arquitetónico de dimensões majestosas.
39 Comments
Gente, que loucura esse lugar, esse monumento e toda a história que está por trás dele. Super interessante, adorei passear com você! Mas é aquilo né, no creo en ETs, pero que los hay, los hay! hehe
Gabriela, só faltou mesmo encontrar ET’s lá dentro 🙂 O lugar é extraordinário… e com intensa carta política e histórica. Beijinhos…
Quase não abre seu post de tanto medo que tenho de extraterrestres!! Mas aí, depois eu entendi tudo e adorei! Seus relatos são interessantes demais, eu viajo junto
Obrigado, Aninha 🙂 Afinal, não era preciso ter medo 😉 beijinhos e boas viagens…
Oi Rui! Você sempre mostrando lugares excepcionais para nós. Parabéns pela coragem em explorar um local que me pareceu ameaçador em um primeiro momento. Haja história!!!
Parabéns pelo post!
Abraços
Carolina
Carolina, obrigado pelas palavras 🙂 Mas é tudo tranquilo. Só há que manter a calma e, neste caso, desafiar um pouco as “vertígens” e propensão para o desequilíbrio :))) bjks e boas viagens…
Rui, esse lugar é meio estranho e muito maluco! Tu descobres cada cena. Top!
Carla, acho que também tu aprecias este tipo de lugares 🙂 Beijinho e boas viagens…
Que aventura e que lugar interessante! Sempre que visito seu blog acabo conhecendo algo que nunca tinha ouvido falar. Eu acho muito bacana fotografar lugares abandonados / ruinas e entender porque tais lugares chegaram ao lugar que chegaram. Obrigado por compartilhar.
Abs
Obrigado, Oscar 🙂 Sim, também curto esses lugares abandonados… e saber um pouco da sua história. O que os levou à ‘glória’ e posteriormente à queda e esquecimento. Abraço e boas viagens!
Nissa, que aventura incrível e que coragem! Eu jamais entraria por um buraco assim e nessas condições. Estou de boca aberta com sua façanha e com a história! Parabéns!
Por vezes, devemos enfrentar as nossas “limitações” 🙂 Beijinho e boas viagens…
que local impressionante e ao mesmo tempo aterrador. Acho de uma beleza curiosa lugares abandonados e de certa forma diferentes, um passeio bem curioso!
Sim, diferente. E gosto disso assim 🙂 Lugares menos turísticos… que exijam algo de nós. Beijinho e boas viagens…
Isto é uma jóia de outro mundo heheheh Valeu bem a pena o enfianço, um amigo meu este aí há pouco tempo mas não entrou…vejo que valia bem o esforço. Excelente!
Francisco, foi das melhores “descobertas” que poderia ter feito. O engenho humano é tramado para dar a volta às autoridades :)) Grande abraço!
É muito interessante toda a história envolvida. infelizmente, muitas vezes não sabemos por estar tão distantes, e mais triste ainda é saber que algo com tanta importância na história daquele povo, algo tão diferente e significativo até para a humanidade não tem tanto cuidado como deveria. Imagina um museu todo voltado pra história? Um espaço dedicado a história de ovnis e aparições? Ia ser fantástico.
É isso mesmo, Sabrina. Devemos valorizar sempre a nossa história. Cuidar que se mantém presente. Beijinho e boas viagens…
Sabrina, acho que um povo que não sabe preservar e valorizar a sua história… vai tropeçar nela várias vezes 🙂 Sim, seria uma ótima ideia para um museu. Até porque o lugar é lindooooo…
oh! Que peso histórico carregam as poeiras desse lugar! Que corajoso és tu! Que incrível ver uma nesga do passado búlgaro!
Eu não gosto de degradação, me dói a alma, mas gosto de ruínas… parece incongruente?!
NADA incongruente, Analuiza 🙂 Temos sentimentos algo parecidos. A coragem de nada valia se não fosse o amigo russo… a sua lanterna e vontade de fazer um estranho feliz 🙂 Beijinho e boas viagens…
Ahhh o leste europeu! Como eu tenho vontade de ficar por uns 2 meses explorando esses lugares fantásticos! Putz quanto mais leio sobre essa região da Europa, mais eu me sinto motivado para emitir um ticket e passar uma temporada explorando os países desse lado europeu. Parabéns por mais um post inspirador 😉
Luiz, tira mas é 2 anos!! 🙂 O Leste é a minha zona preferida da Europa, tirando o meu Portugal e a bela Itália. Tudo mais genuíno e menos turístico. Abraço e boas viagens!
Uau que aventura. Eu li o titulo do post e imaginei uma coisa, e fui surpreendida por outra completamente diferente -e tao interessante!
Que sorte voce deu ao achar alguém pra mostrar o caminho, eu também teria ficado muito muito frustrada de não entrar, ainda mais porque, de dentro, as surpresas foram ainda maiores!
Bom texto, como sempre! Historia incrível, como sempre! 🙂
Obrigado, Klecia 🙂 Gosto desta gente que se ‘sacrifica’ para fazer os outros felizes. Com as minhas vertigens, poderia ser complicado aventurar-me. Ainda por cima sem lanterna. Bom, a vida compensa os ousados e quem persiste em sorrir 🙂 Beijinho e boas viagens…
Rui, cada texto seu é uma aula pra mim. Sou fã de carteirinha, adoro acompanhar suas aventuras e fico abismada como tudo acaba dando certo 😉 obrigada por sua generosidade em compartilhar tanto com a gente, um grande abraço.
Camilla, ainda deixas-me sem palavras 🙂 Obrigado pela partilha carinhosa 🙂 Quando somos ousados, acaba sempre tudo bem. E quando termina “mal”, temos sempre uma bela história para contar pela vida :))) Beijinho e ótimas viagens…
Que aventura para chegar lá dentro desta nave, hein? Não sei se teria coragem, mas foi muito legal o teu relato. Que lugar diferente e com uma bela vista.
🙂 Obrigado, Michela. Desejo de boas aventuras e ótimas viagens…
Que lugar interessante, adorei seu relato que bom que no final deu tudo certo e você contando aqui já ajuda outros viajantes.
🙂 Para mim, acaba sempre bem. Neste caso, só terminaria mal se não conseguisse entrar. Nada como ousar, arriscar… a vida protege os audazes lol Beijinho e boas viagens…
Ainda bem que existem blogs como o seu que nos levam a “viajar” a lugares incríveis como esse.
Obrigado pelas palavras, Simone 🙂 E parabéns por inspirares pais e crianças a viajar em família… bjksss…
Epá, que descoberta estranha, mas eu acho que também ia gostar. E ainda bem que não foi convertido ainda num símbolo turístico, haja lugares que ainda resistem e se escondem no meio da montanha, meio fantasmas!
Nem mais, Diana. Esse é um dos motivos pelos quais NUNCA dou dicas em como chegar ou entrar ou… Não defendo que se faça a ‘papinha’ toda ao turismo de massas. Beijinho e boas viagens…
Muito boa a narrativa e o lugar é bem diferente de muitas atrações turísticas que estamos acostumados a ir.
Obrigado, Ana Carolina. Eu gosto de lugares diferentes 🙂 Espero que também os aprecies. Beijinho e boas viagens…
Que massa! Nunca tinha ouvido falar desse lugar. Achei super interessante! Pena que nã há interesse em restaura-lo, acho que atrairia muito mais gente! Valeu pela dica!
Karine, não quero que vá muito mais gente 🙂 Mas reconheço que este abandono é um ‘crime’. Beijinho e boas viagens…