E quando o acaso nos leva a testemunhar um enlace mágico?

O seu sorriso é mais branco do que o longo vestido que embrulha com muito charme o dia mais feliz da sua vida. Os seus olhos brilham com a intensidade dos puros e a vivacidade dos inocentes. Certamente não o será, mas é uma noiva que dá prazer observar. Dança com profunda alegria e ainda mais sensualidade. No meio de amigas. E rodeada por outros homens. Afinal, agora já é uma mulher casada.
O convite chega no próprio dia. Irrecusável. Um casamento no Sudão? Allah, Allah… tu que reinas por estas bandas, não me deverias ter colocado neste dilema.
É sexta-feira e, não longe dali, há dança especial. Um ritual chamado ‘dhikr’ no túmulo de Sheikh Hamad-al Nil, um líder sufi do século XIX. Os devotos dançam num frenesim e transe enquanto recitam o nome de Allah, ajudando a criar um estado de abandono extático que supostamente permite que os seus corações comuniquem diretamente com o seu Deus.

A tentação é ENORME, mas tenho de optar.
Estranho a festa começar à noite, mas logo me explicam. Entre novembro e fevereiro é quando o calor dá mais tréguas nestas latitudes. E não há o perigo de noivos e convidados ‘derreterem’. “É, por isso, a principal época para matrimónios”, explica-me Azza, quem em endereçou o convite. E que tinha conhecido somente na véspera.
O táxi que nos leva do Corinthia demora boa meia hora. Esperará por nós mais de duas. Cobrar-nos-á o equivalente a uma boa prenda de casamento. E não falo em termos sudaneses…

A música é ocidental. Há luzes, brilho e glamour. E equipa de reportagem de vídeo com meios técnicos de fazer genuína inveja a algumas televisões. Definitivamente, este não é um enlace entre protagonistas do ‘povo’.
Algumas das mais belas mulheres que vejo no Sudão encontro-as aqui. E poucas usam o véu islâmico. Ao contrário do que ensinam os mais radicais, ‘curtem’ música e dançam como se o Mundo acabasse ao nascer do próximo sol…

Contagiante. Aproximo-me. Dou uma perninha. Timidamente, pois, claramente, o meu corpo não tem um terço do ‘swing’ de qualquer destes exímios e relaxados dançarinos africanos. Mais do que assustar, sendo um ‘ruído’ na pista de dança, observar e aprender. Com os melhores. E deliciar-me com cada momento do matrimónio.
Após reconhecimento do terreno, sento-me em mesa junto à ‘pista’. Bill Sorridente também deseja provar do catering da boda, ligeiramente diferente do nosso. Vem em prato. Em doses individuais, protegidas por plástico. Pequenas espetadas embrulhadas. Falafel. Pão. E outras coisas que nem decifro bem. As bebidas devem ser apanhadas em bar.
Estou na maior concentração de falantes de inglês que encontrarei no Sudão. E, acrescente-se, com um nível superior ao meu, que não é dos piores. Muitas perguntas. E surpreendente humor. O melhor antídoto para ultrapassar qualquer barreira cultural. Que não encontro.
Visivelmente, e nada a ver com o tom de pele, somos os outsiders da festa. Mas nunca nos sentimos como tal. Há muita dança e contentamento, sem o álcool que domina boa parte dos casamentos ocidentais.
Os noivos desaparecerão. Durante mais de uma hora. Haverá expectativa. Voltará a mais formosa mulher da noite sem o seu luxuriante vestido branco, trajando agora a tradição sudanesa. Em termos pessoais, muito mais estimulante. Bela e genuína.
Há tradições e rituais com os pais do novo casal que apenas adivinho o significado e as amigas da dupla que irradia felicidade usa – e abusa – de entusiastas e estridentes sons potenciados com a língua, dando liberdade ao seu júblico. Ao lado do ‘coreto’ improvisado, um grupo de seis mulheres, mais velhas, canta, ininterruptamente, musicas tradicionais. Já havia sido esse o registo quando uma hora antes tinham entrado em cena.

Registo a festa e, em brincadeira em direto no Facebook, acabo por me apresentar à noiva. Digo-lhe o quão bela está e como apareci no seu dia especial. Devolve-me expressão cordial e de felicidade. Efémera, pois as que me parecem ‘damas de honor’ cativam cada segundo da sua atenção. Normal. Sou já um privilegiado por estar neste lugar.
Na verdade, a consumação do enlace é só o derradeiro capítulo desta cerimónia, que no Sudão é influenciada por crenças religiosas e culturais, com o tradicional islão a ceder a novas tendências da modernidade ocidental, num equilíbrio que os tornam belos e únicos.
As cerimónias costumam durar dias, sendo que cada um dos noivos tem um papel específico, embora boa parte das atenções se centrem na mulher.
Aqui, os casamentos podem ser divididos no noivado, na preparação e na consumação do que muitos ainda entendem por ‘loucura’.
Os casamentos arranjados continuam a ser bastante comuns no Sudão, algo inclusivamente encorajado pela fé muçulmana. Seja neste registo ou em outro mais ‘moderno’, as famílias devem encontrar-se antes.

O pretendente é obrigado a fazer uma boa oferta em troca da ‘mão’ da donzela. A oferta é tradicionalmente um rebanho de gado, mas nos últimos tempos, começou a incluir dinheiro também. No caso que presencio, não vejo que tenham entrado animais no acordo. A primeira prestação de gado ‘sela’ o acordo, enquanto o restante é entregue no dia do enlace.
Os preparativos demoram ‘apenas’ cerca de um mês e a casa da noiva, quem recebe quase todo o foco, é a base de boa parte das atividades. Cercada por mulheres – familiares e amigas – passa por rituais de beleza para prepará-la para o dia mais importante da sua existência. Até à data.
Cuidam do seu cabelo e o seu corpo ‘mergulha’ em perfumes e incenso. Uma ‘festa da henna’ envolvendo doces e cânticos enquanto adquire intrincadas tatuagens nas suas mãos e pés é crucial para os preparativos, porque, acreditam, afasta os maus espíritos.

O ‘dia D’. A ‘prometida’ estará nervosa, como todas, e o seu amado chega a sua casa, começando por saudar a futura sogra. A quem compete dar permissão para o pretendente entrar em casa. Após o ‘sim’, a sua ‘comitiva’ segue-o, qual romaria.
Há então um sermão religioso, após o qual o casal beija os joelhos dos seus pais e busca as suas bênçãos. Canções tradicionais são cantadas para elogiar o casal e desejar-lhes todo o bem.
A maioria dos convidados aparecerá unicamente na festa. É o meu caso. Tenho o privilégio de assistir ao epílogo do que espero seja uma verdadeira história de amor. Esta bela cerimonia não merece um casamento arranjado.
25 Comments
Minha nossa, que experiência fantástica, como faço para ter a sorte de ter algo assim ? hahahah E olha que as moçoilas são mesmo bonitas !!
Fantástico!!!!que artigo enriquecidor!!
Muito obrigado
Fantástico!!!!que artigo enriquecidor!!
Muito obrigado pelo artigo
Agora si, fizeste-me ter uma inveja BRUTAL! Que experiência incrível. QUERO!
Que experiência espetacular e um relato à mesma medida. Mais uma vez, gostei muito de ler!
que festa linda, e as roupas são de uma beleza única, a noiva está belíssima e que experiência pra deixar marcada por toda a vida!
Flávia, foi uma fantástica surpresa e experiência inesquecível… um privilégio, até pelo inesperado 🙂
Como sempre, uma bela partilha de belas experiências que não nos cansamos de ler. Fantásticas fotos! Muito obrigado pela dedicação e cuidado em partilhar tão fantásticos artigos! Felicidades e boas viagens.
Patrícia, assim até me deixas sem jeito 🙂 Obrigado pelas palavras. Beijinho e ótimas viagens…
Que experiência interessante. É muito legal estar em contato com outras culturas. Parabéns pelos relatos bacanas aqui no blog.
Obrigado, Anna Luíza 🙂 NADA se compara ao conhecimento – compreensão e tolerância – e exploração de outras culturas… bjks e boas viagens…
Que experiência fantástica! Tenho certeza que irá guardar pra sempre em sua memória. Mas fiquei curioso pra saber como foi que surgiu o convite pro casamento. hehe 🙂
Itamar, o convite surgiu através de amiga da noiva… que é amiga de um brasileiro, que eu não conheço (encontrei-lo no fb), mas que esteve no Sudão e me deu o contacto. Acabei por conhecer a Azza, com quem fui jantar (mais ao seu noivo) e no dia seguinte, no próprio do casamento, lá surgiu o convite 🙂 Tive mais sorte do que juízo :))))
Que privilégio poder participar de evento tão significativo e cheio de simbolismos – e principalmente diverso de nossa cultura. Obrigada por compartilhar.
Sim, Marcia, senti-me mesmo privilegiado 🙂 Obrigado, beijinho e boas viagens…
Que extraordinária experiência! Um convite irrecusável, sem dúvida. Apesar do ritual (a outra opção) despertar igual curiosidade, penso que teria tomado a mesma opção.
Ana, confio que voltei ao Sudão (gostei mesmo MUITO do povo) e aí terei a oportunidade de satisfazer a curiosidade… beijinho e boas viagens…
Que experiência maravilhosa essa que teve no Sudão. Que cultura colorida e cheia de magia. Nunca pude imagina o quanto é lindo um casamento lá. Belas fotos. Parabens!
Flavia, o casamento foi mesmo bonito. Gostei imenso do ambiente e da visível felicidade em toda a gente…
Um convite irrecusável, sem dúvida e um privilégio ser inserido na cultura local, observar de dentro um evento com tantos elementos de observação, legítimos, especialmente por serem bem diferentes daqueles que acontecem dos lados de cá! 🙂
Acredita, Analuiza. E, adivinha? Há um par de semanas estive num ‘pré-casamento’, no Uzbequistão 🙂 Em breve coloco no site… beijinho e boas viagens…
Que experiência incrível poder ver um momento tão especial unindo duas famílias. Interessante o não uso do véu pela maioria das mulheres e a tradição do dote ainda existir por lá.
O Mundo é mesmo diverso, Lulu. E sempre, sempre muito estimulante… 🙂
Uau! Que inusitado. Deve ter sido uma experiência muito diferente e emocionante.
Das melhores que já tive em viagem, Eloah 🙂