Quando um safari encarna o paraíso…
Paula Capela Martins (texto) e Rui Figueiredo Almeida (Fotos).


África é um murro no estômago, invade o que de mais profundo se esconde em nós, despertando a oculta dimensão das emoções inconscientemente entorpecidas. É o céu e o inferno de braço dado, uma vertigem incessante que a cada momento nos sacode e ali mesmo nos damos conta que África é uma questão de pele. As suas gentes aglomeram-se entre o pouco e o nada num quotidiano sofrido. A África que percorremos não sabemos o que é, apenas que nos troca as voltas e subitamente se impõe à medida que nela nos embrenhamos. Somos um grupo de onze, contagiados pelo apelo do Continente Negro, que chega à Tanzânia, como tantos outros, para se perder na esmagadora beleza dos seus parques nacionais, onde o tempo pára e parece que Deus existe. Após milhares de quilómetros percorridos na imensidão africana, eclipsam-se as imagens dos povoados empoeirados e do cheiro a escape até nos depararmos com o secreto parque do Lago Manyara, que dá nome às árvores locais batizadas pelos masai, povo seminómada que habita a região sul do Quénia e norte da Tanzânia. O lugar conjuga trilhos de vegetação cerrada e passagens amplas, abrigo de espécies residentes e migratórias, onde o grupo avista as primeiras criaturas deste paraíso com 329 km2. Edgar, o guia, desliga os motores e sussurra: leopard. O grupo agita-se, tomado pela solene promessa de avistamento do possante felino que ao longe, camuflado, dormita no cimo de uma árvore. Impercetível, só as lentes mais potentes o alcançam, porque do jipe resta a sombra do grande gato e a agitação dos visitantes ansiosos como crianças no primeiro passeio do colégio. Edgar avança, travando mais à frente para deixar passar os incautos macacos vervet, conhecidos pelos seus testículos azuis que causam impacto mas que não têm como concorrer com as imponentes girafas e elefantes, seguindo-se os búfalos, zebras, hipopótamos, gnus e impalas. A vida selvagem corre serena e silenciosa no Manyara que Ernest Heminguay considerou “o mais encantador de África”. O título assenta como uma luva, mas, que me perdoe o escritor, o melhor estava por vir: Ngorongoro e a maior cratera vulcânica adormecida do planeta. Faltam palavras para descrever os 20 mil km2 de um sítio mágico classificado como Património Mundial da Humanidade. Ali detemo-nos no vazio, perante um poder supremo que nos reduz à dimensão de partículas; ali sente-se o magnetismo africano e a pequenez da condição humana. É um outro mundo; capturado o instante e enxugadas as lágrimas, fica a certeza de um regresso obrigatório.
No coração da ancestral ordem felina


Quando se desce a cratera, situada a 180 km de Arusha, a terceira maior cidade da Tanzânia, e onde, em 2009, foram proibidas as atividades agrícolas e pastorícias dos masai, realojados na região, inicia-se uma das mais colossais experiências de safari. A paisagem suspende-nos a respiração e começa o filme real da vida selvagem, indiferente às fronteiras das pradarias e acácias de Ngorongoro e o Serengeti, a “planície sem fim” dos masai. Existe uma passagem simbólica entre os dois parques, sendo o Serengeti uma das Sete Maravilhas de África, casa de 70 espécies de grandes mamíferos e 500 espécies de aves. Uma das maiores populações de leões reside aqui: três mil habitam os 15 mil km2 da planície e é fácil avistá-los bem de perto, aparentemente alheados à nossa presença. Uma família banqueteia-se diante de uma carcaça de búfalo com 900 kg, rodeada de hienas, chacais e abutres, à espera da sua parte. Todos cumprem a ordem estabelecida, enquanto, por perto, dois jovens leões dormem à sombra de uma acácia, um deles de barriga para cima ao estilo dos nossos gatos domésticos; afinal todos dormem uma média de 18 h/dia. A sorte estava do nosso lado quando ao segundo dia nos cruzamos com um dos animais mais rápidos do mundo, pela sua corrida poder atingir mais de 100km/h), e que pertence à lista das espécies ameaçadas, contando-se apenas sete mil: a chita. Um jovem macho procura outro para o expulsar do seu território; trava-se uma bulha estridente antes dos ensanguentados pugilistas felinos saírem disparados, desaparecendo na planície. Fugaz mas intenso, virou eterno ao ficar para sempre na memória de quem assistiu sem pestanejar.
A ameaça da caça ilegal

Passar pelas girafas, que do alto dos seis seis metros, comem, com elegância, folhas de acácia, a sua comida predileta, é uma experiência singular, tornando-se repugnante a ideia do turismo de caça e da caça furtiva que atinge também chocantemente a população de elefantes e rinocerontes: o primeiro pelo marfim e o segundo usado na medicina asiática, essencialmente como afrodisíaco.

No Serengeti são menos de 40 e não os vimos. Segundo Edgar, o guia, são monitorizados e, pertencendo a uma população vulnerável, os guardas intervêm quando atacados por predadores. Os elefantes, esses, bebiam num charco antes de nos fixarem o olhar, impondo respeito na proteção das duas crias da família. Estima-se que a caça ilegal renda entre 15 a 20 mil milhões de dólares, cujo combate não impediu até agora que a Tanzânia perdesse 60 por cento dos seus elefantes.
Na despedida: um clã de 40 hienas preparava-se para caçar. Até então mostraram-se em pequenos grupos, à espera dos restos deixados pelos leões, mas este era dia de ação. A hiena, que vive numa sociedade dominada por fêmeas – liderança invulgar entre os mamíferos -, é um animal mal-amado: o aspeto feroz e o dorso rampeado não ajudam, mas, entre os carnívoros, é dos que melhor se tem adaptado às agruras das alterações climáticas. Dezenas delas tinham a estratégia montada mas o jipe seguiu caminho até um represa onde dois hipopótamos emergiam. Sem glândulas sudoríparas, mantém-se muito tempo dentro de água e só em terra os territoriais hipos se podem tornar perigosos.
Visitar na época baixa


Estar no Serengeti e Ngorongoro é um turning point: há o antes e o depois. A experiência de pernoitar em tenda faz-nos suspirar pelo conforto das nossas vidas urbanas, mas não é todos os dias que dormimos ao lado dos búfalos e com hienas a tentar escavar o nosso abrigo de lona. Não é todos os dias que o céu se enche de estrelas só para nós: depois de um arrebatador pôr do sol, observar o cinturão de Órion, longe dos céus europeu poluídos de luzes, é uma visão magistral: nesse instante pensamos – não dizemos, pensamos só – “valeu a pena comer tanto pó, chegar à noite e tomar banho de toalhitas”. África é um banquete para os sentidos. Outubro, início de novembro é uma boa altura para visitar, porque nesta época baixa o calor dá tréguas e número de visitantes baixa. Depois começa a época das chuvas e com ela renascem os diferentes habitats: florestas, pântanos, kopjes, savanas e bosques. Voltar é a palavra que nos acompanha na partida e a única que nos conforta: queremos mais África, mais do que uma sombra de leopardo, queremos o rinoceronte para completar os Big Five, queremos passar de novo pelas aldeias masai e seus rebanhos, queremos voltar a olhar no olho do elefante.
33 Comments
Estou quase a caminho, quase, quase… não tarda nada aterro em Arusha! Obrigado pela inspiração! 🙂
Filipe, vais deixar-me com muita água na boca, pois esta viagem é das mais fantásticas que se pode fazer… curte e conta-nos tudinho 🙂 Abraço!!
Obrigada por este artigo muito bem escrito e pelas fotos maravilhosas!
Aproveito para publicitar a minha grande viagem a Tanzania e Zanzibar com o apoio da Landescape. Ja sairam as novas datas para Junho e Agosto. Para os mais interessados passem na pagina da Landescape para mais informacoes: http://www.landescape.pt.
Beijinhos
Carolina
Não é preciso nascer nesse continente grandioso para lhe sentir o apelo. Deus esmerou-se quando criou África, ainda que tenha tanto de beleza quanto de drama.
P.S. É muito bom ver os animais no seu habitat natural, mas é preciso uma boa máquina (e um bocadinho de conhecimentos técnicos) para os conseguir captar. As minhas imagens dos animais em Angola são quase todas péssimas
Ruthia, o Rui Figueiredo Almeida (amigo responsável pelas fotos, enquanto a Paula Capela Martins nos brindou com este texto) esmerou-se 🙂 Investiu em ótimo material e em conhecimento. As minhas fotos dos animais também ficaram… parecidas com as tuas lol África é mesmo isso: beleza incomparável e drama ao mesmo nível. Cabe-nos tentar mudar o rumo dos acontecimentos… Beijinho e boas viagens…
O blog de vocês é uma bela exceção na blogosfera, não conheço nenhum outro que consegue misturar informações práticas e literatura poética nos textos tão bem como o Born Free! Vocês já sabem que sou fâ 🙂 Quantas histórias e aprendizado pela África, não?
Gabriela, muito obrigado pelas palavras 🙂 Até fico sem jeito :)) O Bornfreee sou apenas eu, Rui Barbosa Batista, mas nesta viagem convidei a Paula Capela Martins – trata as letras por ‘tu’ – e o Rui Almeida – apaixonada pela fotografia – a partilharem a experiência que tivemos no safari na Tanzânia. Também sou grande adepto do vosso fantástico projeto! Beijinho e boas viagens…
Eh pá! Viste coisas altamente. As chitas são sempre um ponto altíssimo! Quero muito voltar ao Serengeti e a Ngorongoro. Ngorongoro e, para mim, um dos lugares naturias mais impressionantes do mundo.
Carla, vimos uma luta entre chitas… National Geographic! Algo mesmo… depois mostro-te o vídeo :)))
Rui, eu vi o video no facebook. Babei e fiquei ruidinha de inveja. Sou tão mas tão “gulosa” de mundo que não me contenho.
:))) Aiiii… Carlaaaaaa… não há dia em que não deseje voltar… As memórias de África tornam-na num desejo incandescente. Por vezes, ‘dói’ estar longe. Que sentimento estranho…
Uau! Que sonho de viagem!! Quero muito um dia realizar e ver “de verdade” os animais no seu habitat natural . Belíssimos texto, informações e fotos!
Cristina, um safari em Ngorongoro e Serengeti são experiências de vida IMPERDÍVEISSSS… 🙂
Rui, viajei aqui para uma África que só conheço de documentários e revistas de viagem, mas foi muito mais prazeroso. A mais recente série (Tales by Light, Netflix, assista, é maravilhoso) mostra o trabalho de um grupo que retira as presas dos rinocerontes para evitar que sejam mortos. Elas voltam a crescer, e o trabalho se repete. Achei uma solução surreal.
Marcia, há muitos projetos fantásticos em África. Temos muito a ensinar, a partilhar, mas talvez ainda mais a aprender 🙂 Todos os bons exemplos devem ser partilhados… Beijinho e boas viagens…
Amo os seus textos. É uma imersão no local através das palavras. Realmente a África é muito mais do que os lugares turísticos no Sul. Parabéns por mostrar o que as pessoas fecham os olhos pra ver.
Obrigado, Tharsila, por estar sempre aí desse lado 🙂 É bom saber que o Bornfreee tem também muitas/os companheiras/os de viagem desse lado do Atlântico…
África, um despertar de emoções, de paixões…Sonho muito um dia fazer uma viagem semelhante. Estes textos são uma verdadeira inspiração. Parabéns
Vítor, desta vez os créditos são TODOS da Paula Capela Martins e do Rui Almeida 🙂 Agradeço por eles!! Grande abraço!
Um texto de arrepiar os sentidos! Esta África que eu sonho em conhecer! Que mexe com a gente, de energias e paisagens fortes, onde o céu e o inferno caminham de mãos dadas. Onde os sorrisos se abrem entre lágrimas e a esperança nunca morre! Onde a natureza é exuberante, poderosa e nos diz de onde viemos e para onde vamos. A África que vejo no povo de minha terra, cidade negra. Esta é a África que eu sonho um dia conhecer!
Analuizaaaaaa… :))) Já tens uma boa experiência na África do Sul 🙂 Já lhe sentiste o sabor… e por isso entendo que queiras sempre mais e mais 🙂 Enorme beijinho e boas viagens…
Um sonho é fazer uma safari assim, quero muito levar a Olivia. E que belo texto e fotos, Rui, aumento ainda mais essa vontade.
Edson, acho que será um excelente presente, um belo legado que podes deixar à Olívia 🙂 Ajudo no que precisares. Grande abraço!
Viajei junto com você pela África nesse texto. Lindo!
q maravilhoso esse relato, fico imaginando a família de leões almoçando e todo mundo só de olho nos restos, não deve ser fácil hauehaue
Rui, como sempre, adoro seu jeito de contar a viagem. A África é tudo isso mesmo e o Serengeti está no topo da lista de lugares que preciso conhecer. Todos que vão voltam anestesiados pela beleza de tantos animais. Nada mais lindo que a pura natureza, não é?
Obrigado, Bruna, mas desta vez foi a Paula Capela Martins 🙂 Mas África é tudo isso… um lugar que habita nos nossos sonhos e cuja realidade toca os extremos da realidade das nossas vontades.
Imagino aqui o quanto deve ter sido incrível dormir nas tendas. Mas ia bater um nervosinho se hienas viessem tentar escavar o nosso abrigo de lona, rs… Mas, apesar disso, imagino que ter uma imensidão de estrelas como teto foi emocionante!
Sim, ÁFrica é sempre, sempre muito emocionante. Sobram motivos e histórias para a tornar única no planeta. Diferente de tudo o resto…
Este texto só me fez ter certeza que preciso conhecer com urgência este lugar. Obrigada pela inspiração.
Eloah… urgência mesmo!! África justifica todos os sonhos… planeia e acredita que a tua forma de ver o Mundo mudará…
Também partilho esse sentimento estranho. Por muitos locais que visite, cada vez que volto a África (e à Namíbia em particular) fico louco. África é irresistível.
Jorge Duarte Estevão, tem mesmo “algo” de diferente de tudo o resto… 🙂