“Agdam, Nagorno-Karabakh. É um não-lugar que asfixia. Uma secreta vergonha do ser humano. E não apetece permanecer. Existir um só minuto mais neste degredo”.


O sisudo funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Nagorno Karabakh é de assertividade curta e seca: “Não, não podem visitar Agdam”. Educadamente, e fingindo estar a ‘leste’ da sua história, pergunto porquê. Não disfarça um ar ainda mais sério, agora de braço dado com evidente desconforto. “Porque é uma cidade proibida!”, atira, em tom de voz algo descontrolado. E vira costas. Abruptamente e em passo firme.
Uma nega destas não deixa dúvidas. Ou assentimos e cumprimos. Ou apenas desperta maior interesse e curiosidade. Depois, depende da massa da qual somos feitos. Há quem siga as regras. E quem, ousadamente, mas de forma consciente e responsável, as tente contornar. É assim que faremos ouvidos moucos às indicações. Bom, pelo menos tentaremos…
O dia amanhece cinzento. Despedimo-nos de Stepanakert, a ‘capital’, e dirigimo-nos a uns 30 quilómetros para nordeste. Em pouco tempo chegamos. Ou presumimos que o fazemos. A destruição de todo o edificado humano na paisagem leva-nos a crer que estamos perto. O GPS situa-nos e vamos tentando não nos perder nos labirintos da estrada.
Este é um lugar verdadeiramente arrepiante. Torce-nos o moral, verga-nos a espinha. O desolador resultado de insana carnificina traduzido num monte de ruínas. Escombros. Não há um edifício inteiro. Cada pedra árida guardiã de histórias de horror. Uma cidade fantasma. Um silêncio espesso, pesado.

Na guerra de Nagorno-Karabakh, as forças arménias da região desencadearam violenta ofensiva em julho de 1993. O Azerbaijão usava a cidade como ponto estratégico do seu ataque à região. Os arménios avançaram com todo o tipo de artilharia pesada. Uns 30.000 azeris foram desalojados e fugiram para o país natal. E, num resumo que esconde demasiados detalhes importantes, para não haver o perigo de retomada ou regresso do inimigo, os conquistadores preferiram a sórdida política de terra queimada. Destruíram tudo. Não há pedra sobre pedra…

A comunidade internacional registou, entretanto, infindáveis violações dos direitos humanos. Todo o tipo de crimes de guerra. Reféns, mortes após captura. Tortura de civis (…). Registou. Não atuou. Mais uma vez.
Entretanto, nos últimos 20 anos, o pouco que restava foi pilhado. Até pedras e outros materiais danificados. Usados para construção. Reerguer vidas, bem longe dali. A destruição da ‘cidade branca’ (nome original) apenas salvou uma mesquita. Parcialmente.
Em toda a sua ampla e desoladora área, vislumbro em Agdam o milagre de duas ruínas habitadas. Estou a registar este pesadelo em imagens. Não esqueci que esta é uma “cidade proibida” e que, por estas bandas, as forças da lei não têm hábitos brandos. Há esse alerta em cada gesto. Um cuidado redobrado nos cantos do olhar, antes de cada passo.
Somos observados por alguém que, minutos antes, víramos carregar material para uma das ruínas ‘habitadas’. Um mistério presente. Que aparece e desaparece da nossa vista. Não sei se somos vigiados. Ou apenas observados. Se somos uma ameaça, ou apenas uma curiosidade.

Finalmente, avança. Não posso desperdiçar a oportunidade. Vou ao seu caminho. Aproximo-me da carcomida viatura. Abre o vidro. Não sei bem o que esperar. Talvez uma reação áspera? Surpreende-me…
É sexagenário. E deseja comunicar. Há visível esforço nesse sentido. Mas a frustração está ao nível da sua vontade: não fala inglês. Vejo desalento no seu olhar. E não imagina o tamanho do meu. Há tanto que desejava saber. Perguntar. Entender…

Neste caso, a linguagem gestual é exígua. Ele bem tenta, mas não o entendo. O seu insistente esforço não permite uma verdadeira e esclarecedora comunicação. Um instante que é um universo de desapontamento entre inúmeras histórias em viagem. Fico-me pela expressividade do seu olhar. Que terá atravessado mais horrores do que aqueles que poderei imaginar.
Não me perderei muito mais por Agdam. É um não-lugar que asfixia. Uma secreta vergonha do ser humano. E não apetece permanecer. Existir um só minuto mais neste degredo.
Apesar da mobilização nacional na resposta ao ataque pesado da Arménia a 23 de julho de 1993, as forças do Azerbaijão conseguiram retomar apenas algumas aldeias circundantes, mas não a cidade: Hoje Agdam é caótico monte de ruínas e é usada pelo exército de defesa de Nagorno-Karabakh como um ponto vital da defesa estratégica. Do revanchismo do Azerbaijão? Das pretensões dos ‘irmãos’ da Arménia?

Em silêncio, avançaremos rumo a norte. Passaremos pelos vários campos militares. Robusta presença. Para que os azeris não tenham mesmo qualquer tentação. Um símbolo do desfecho da guerra e que Nagorno-Karabakh deseja manter vivo. Tal como está bem viva a desumana tragédia de Agdam.
Avançamos quilómetros e vamos encontrando tanques de guerra podres e abandonados nas bermas das caóticas estradas, normalmente de terra batida. Imponentes e enferrujados blindados transformados em estátuas, adornadas por fotografias das vítimas e flores. São ícones que não permitem à memória vacilar. E, espero, educam as novas gerações para que nada disto se repita.
39 Comments
Fantástico, Rui! Fantástico!
Obrigado, Nelson Póvia. Abraço!
Rui, o seu texto me transportou para este lugar tão marcado pelos conflitos. Uma história triste, mas que se transforma em uma verdadeira aula através das suas palavras. Obrigada!
Obrigado, Mariana. Beijinho e boas viagens…
Tenho alguma curiosidade em visitar Nagorno Karabakh. A verdade é que nunca me inclinei muito para essa zona do globo. O Cáucaso nunca me atraiu muito mas começa a chamar-me cada vez mais.
Carla, cada vez mais, o Cáucaso ganha um lugar predilecto nas minhas opções de viagem. Vais gostar… 😉
Caramba, adorei o relato. Confesso que antes Nagorno Karabakh não chamava muito minha atenção, mas desde o final do ano passado venho lendo e me interessando cada vez mais.
Lua Ferreira, agora o ambiente volta a estar mais “pesado”… mas ali há muita “história” para desvendar… beijinho e boas viagens.
Que texto envolvente! Parabéns pelo relato.
Obrigado, Eloah 🙂 Beijinho e boas viagens.
Imagino que todo o percurso tenha sido uma descarga monumental de adrenalina. Grata pela narrativa mas, acima de tudo, pelo forma como nos fez sentir esta experiência tão pessoal.
Abraço
Obrigado, Ruthia 🙂 Beijinho e boas viagens…
Espero um dia que este mundo se livre de “revanches” e “pretensões” que não levam a nada. Viajei através do seu texto! Parabéns Rui!
Obrigado, Alessandra. E concordo totalmente contigo 🙂 Boas viagens…
Que texto tão bem escrito Rui, parabéns. Por momentos vi-me transportada para esse lugar tão desolador, testemunha de tempos assustadores. Obrigada pela partilha da experiência!
Obrigado, Maria João. E continuação de boas viagens… 🙂
Arrepiante!!! Que texto incrível! Imagino como deve ser esse lugar ao vivo e em cores. Acho que somos feitos da mesma matéria! Obrigada por compartilhar sua experiência!
Obrigado EU pelas tuas palavras, Alessandra Fratus 🙂 É o lado “B” das viagens que mais me estimula…
nunca tinha ouvido falar (tanto que coloquei no google pra ver a posição exata ahueah) uma história triste que vc contou com belas palavras de forma envolvente!
Angela Sant Anna, quando descansares do Uyuni podes começar a pensar em algo ainda mais “louco” 😉 Beijinho e boas viagens…
Um texto muito bem escrito e muito interessante, acompanho seu blog pois planejo em setembo viajar para a região que compreende o Cáucaso.
Obrigado, Luiz Marcelino. Se precisares de algo, contacta-me em privado, tranquilamente 🙂 Abraço! Vais AMAR o Cáucaso.
Ótima dica, adorei. Deve ser bem diferente.
“É um não-lugar que asfixia. Uma secreta vergonha do ser humano. E não apetece permanecer” – isso resume o que eu também senti daqui, ao ler seu relato. Que artigo forte! E que coragem a sua! Que tristeza haver este tipo de lugar com este tipo de história…
Você conhece o “Não conta lá em casa”? Suas histórias me fazem lembrar este projeto. É um documentário que virou livro (ou o contrário?). Se não conhece, deixo aqui a sugestão, acho que vai gostar!
Abraço
Que relato excelente! Dá pra me sentir lá presente pelas ruas também. Há muita história em locais assim.
Obrigado, Paola. Beijinho e boas viagens…
Relato incrível de um local pouco conhecido e que pelo que percebi continuará assim por um tempo. Obrigado por compartilhar conosco essa experiência.
Que texto envolvente. Me senti lá! O mundo tem lugares tão diferentes por causas tão distintas que um post como o seu me tocou muito
Obrigado, Lulu 🙂 Beijinho e boas viagens…
Rui, a cada visita em sue blog, viajo e imagino cada detalhe que você passou! Fico maravilhado com seus textos! Mais uma vez parabéns!!! Aqui entre nós… eu não sei se teria a coragem, hehehe. Demais mesmo!
Itamar, obrigado por toda a gentileza 🙂 Fico feliz por saber que a partilha de experiências também fazem outros grandes viajantes “viajar” pelo Mundo 🙂 Grande abraço e muitas e boas aventuras!
Fantástico, Rui!
Por mais curiosa que sou, acho que obedeceria o sisudo funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Me senti angustiada com o avanço de teu texto!
Mais uma vez, parabéns
Obrigado, Juliana 🙂 Beijinho e boas viagens…
Caramba, Rui. Eu que me vejo evitando esse tipo de lugar, exatamente por não saber lidar emocionalmente com tanta tragédia, vejo em suas palavras e pelos seus olhos a exata razão de se conhecer esses lugares – impedir que as mesmas tragédias se repitam. Fiquei emocionada, muito obrigada por compartilhar.
Obrigado eu pelas tuas palavras, Camilla 🙂 Beijinho e boas viagens…
Caraca. Me arrepiou até a espinha!
Que experiência você teve, Rui!
Corajoso, que foi consciente explorar uma Cidade Proibida. Parabéns!
Tiro o chapéu pra ti e para tuas vivências!
Carina, muito obrigado pela gentileza das palavras. Beijinho e boas viagens 🙂
Rui, me transportei para lá através do seu relato incrível! são esses tipos de postss que me dão mais vontade de viajar!! parabéns
Obrigado pelas palavras, Aninha 🙂 Então muitas a boas viagens!!