Não há despertar igual ao do Bird Nest. Ímpar, nesta África que me arrebata. Fascinam-me estes arejados quartos étnicos. E perco a noção do tempo na varanda, de onde aprecio a natureza frondosa que rodeia o relaxado plano de água do Lago Bunyonyi, que se aninha manso aos pés do nosso olhar.

É cedo. A sinfonia animal ecoa na espessa bruma, que confere mistério e misticismo à paisagem. Que se vai revelando muito lentamente, à medida que os tentaculares raios de sol a despem… É a isto que chamo de plenitude…
Apetece congelar este momento. Na verdade, todos os que passarei no Bunyonyi. Fazer eternizar as inúmeras envolventes sensações que desafiam sistematicamente cada um dos sentidos. E como estes estão bem despertos!

O pequeno-almoço é principesco, com visão para o éden, mas há que sentir o dia. É com energias renovadas que tento equilibrar-me em canoa escavada em tronco de madeira. A ideia é cruzar o lago. Rasgar as águas teimosamente serenas. Sempre pressas, aprecio todo o filme. No Bunyonyi, sentimo-nos protagonistas de documentário da National Geographic. Seja pelas ágeis aves que mergulham a pique em busca de incauto peixe, pelas acrobatas cabras que pastam em íngremes encostas ou pelas várias famílias que vão cruzando o lago em precárias pirogas. Uma imagem que se repete há séculos. Sinto-me numa cápsula do tempo…
A toda a hora, apetece ‘comer’ a paisagem. E é já em terra firme que iniciamos um longo passeio que nos vai tomar toda a manhã. Em exigente, mas imperdível sobe e desce em permanente contacto com os locais. Tão entusiasmados, abertos e comunicativos quanto nós. Um jovem que não sabe a idade – diz ter 16, mas aparenta mais – e que se assume órfão, juntamente com quatro irmãos, vai-nos fazendo companhia. Torna-se improvisado guia, com a inteligência de não se tentar impor. Respeita o espaço de cada um, quando necessário. Bom interlocutor. Enriquece a nossa experiência. E ganha o dia.
Em todo o lado, cruzámo-nos com gente de sorriso franco, fácil. Crianças desejosas de cumprimentar os ‘estranhos’. Umas declaradamente. Outras, mais tímidas, apenas o insinuam no olhar. Principalmente aquelas prematuramente cansadas, pela quantidade de vezes que palmilham a íngreme encosta a transportar água desde o lago.

Entramos em ‘bares’ e ‘restaurantes’ que não existem senão no conceito ocidental. Na verdade, não passam de meia dúzia de tábuas mal-amanhadas. Onde se vende álcool e todos se cruzam.
Mulheres sorriem-nos derreadas, enquanto trabalham a terra e cuidam da casa. Ajudadas por incontáveis filhos…
Aqui, no Lago Bunyonyi, sinto invulgar bem-estar ‘espiritual’ em gente que nem calçado tem. Um bem que, mesmo em segunda ou terceira mão, é para muitos um inatingível luxo…

Enquanto desafio uma gelada cerveja local – prefiro vinho, mas neste ‘buteco’ nem devem saber o que é – penso um pouco no contrate com o nosso ocidental ‘mundinho’. “Devia haver legislação que obrigasse os trabalhadores a passar uma semana do seu ano neste dito terceiro mundo. Muito gratos ficariam. E engordavam menos os bolsos de psicólogos, psiquiatras e farmacêuticas”, sentenciam. Nelo e Daniel, os meus companheiros de aventura neste périplo africano assentem. Enquanto mandam vir outra bem gelada e o suor lhes escorre pelo corpo em tronco nu.
Lá do alto, contemplamos a ilha do castigo. Minúscula e com apenas uma árvore. Até não há muito tempo, era residência ‘oficial’ das mulheres grávidas, mas sem marido. Ali ficavam. Até serem levadas, pela morte… Dez sombrios metros quadrados podem albergar outras tantas pessoas.
É novamente hora de arriscar um ‘distinto’ bar onde homens e mulheres se misturam em torno de cerveja artesanal. Com cereais e mel. Não ficamos verdadeiro fã deste néctar, mas vale pela partilha. O tempo flutua sem regras. E eu também. O cansaço físico é esmagado por tudo o que está a ser experienciado.
Pheona, rececionista do hotel colonial que nos albergou em Kabale, vem ter connosco. Atrasara-se uns minutos de manhã – não há transporte regular, pelo que teve de se amanhar numa qualquer boleia – e perdeu a caminhada. Aqui não há rede de telemóvel, pelo que se limitou a esperar. Na dengosa esplanada do Bird Nest. Faz-nos companhia ao almoço que também é hora de apetites para uma ave de rapina: várias vezes ao dia, o nosso anfitrião, Raf Segers, lança pequenos pedaços de carne que o seu amigo apanha em voos de arriscada mestria.

Caminhada até à aldeia. Minúsculo supermercado cavernal, ao jeito de desengonçado bunker. Está apinhado de gente. Tentamos perceber o motivo: tem televisão! Aparentemente, a única na população. É puro fascínio. Uma multidão hipnotizada por pequena TV, com imagem de fraco nível. Recorda-me o Portugal dos anos 70. E sinto nostalgia da serenidade social desses tempos.
Deambulando pela precária aldeia, fixamo-nos numa senhora que descasca batatas em frente à sua barraca. Com a ajuda de improvisado intérprete, marcaremos almoço consigo para o dia seguinte. Quando cumprimos com o prometido e aparecemos, com rasgado sorriso de puro entusiasmo, a incrédula anfitriã ainda não acredita que estamos mesmo ali. Sente-se honrada. Não o estará mais do que nós. Afinal, ninguém se ‘oferece’ para refeição em casa desconhecida e é recebido com a mais convidativa das expressões.

Em lugar paupérrimo – como todos os outros por aqui – e com direito ao menu habitual: arroz, feijão, ‘motoke’ (banana cozinhada, que mais sabe a batata) e ‘crayfish’, um marisco do lago. Afinal, não há caranguejo suficiente. Substitui-o por ranhosos, gordurosos e parcos pedaços de carne de vaca. Para nós, um manjar em família.
A piscina panorâmica e natural, com as águas do Bunyonyi purificadas por plantas, volta a ser o nosso poiso no Bird Nest. Ahhhhh… que bem que se está. Não imagino melhor forma de deixar o dia avançar nas tonalidades do céu…
Desta vez, hóspedes belgas não acham piada a Pheona entre nós. Vieram para África, mas não desejarão misturas. Irrelevante. Estamos todos mais do que bem. E, diga-se, ficarmos com toda a piscina e espaço envolvente só para nós não é motivo para especial preocupação. E nem precisamos agradecer este incompreensível incómodo europeu.
O jantar combina a melhor gastronomia com um espaço do mais belo e acolhedor que recordo. Étnico, como tudo no Bird Nest, com cores quentes mescladas na luz. E música que ‘liga’ toda a experiência com adequada mestria.

Neste projeto sobra amor e respeito. Pela cultura local e os seus hábitos. Há uma horta comunitária que alimenta o restaurante, mas também os colaboradores que têm direito ao seu quinhão. Os funcionários também beneficiam de uma pequena cresce que cuida dos seus filhos.
“Somos empresários na Bélgica. Não faz sentido agirmos aqui de forma diferente do que fazemos lá. Nas obrigações e nos direitos. Não viemos cá para explorar Africa. O Continente está-nos no sangue. Tal como as pessoas. O Bird Nest só faz sentido enquanto comunidade”, explica-me o mentor do projeto liderado por dois casais.
Com mais de 100 países no currículo de viagem, assumo, sem modéstia, que tenho razoável conhecimento de muitos dos lugares mágicos do planeta. Calcorreei os cinco continentes, tenho verdadeira paixão pelas pessoas, mas são os lugares de menor densidade populacional que mais apaixonam.
Com as suas paisagens, história, cultura e afáveis habitantes, o Lago Bunyonyi conquistou, meritoriamente, um lugar no Top. Irrelevante se cinco ou 10. Aqui, neste remoto Uganda, as experiências fazem questão de se incrustarem profundamente na pele e os momentos ganham o merecido direito a ser eternos….

36 Comments
Ora aí está num país que tem urgentemente que entrar para a minha lista de viagem. Já não sei que faça a esta atracção que começa a crescer de forma desmesurada por África!
Carla Mota, é um vírus sem antídoto 🙂 Deixa-te levar :)))) temos bons cromos de África para trocar. Bjksss
A África é um espetáculo a parte não é? Estou louca p/ voltar e explorar um pouco mais…
Belo artigo!
Abs, Marlise
Obrigado, Marlise 🙂 Nada como voltar e mergulhar, profundamente, em África…
Tenho que confessar que a minha incursão por Africa se ficou por Marrocos e Tunísia… se calhar vou rever a minha posição sobre este continente… 😉 …. Excelentes fotos! 🙂
Obrigado, Margarida Nobre. A África negra é outro registo… aconselho vivamente 🙂 boas viagens…
Olá Rui !! Maravilhoso ! Tenho andado a pesquisar Uganda e Ruanda e não que dou de caras com isto ?? Fantástico, o Uganda não é só gorilas !
Francisco Agostinho, o Uganda é brutal… o Ruanda também muito estimulante. Qualquer coisa, contacta-me no privado. Boas viagens!
Que relato interessante! Nunca tinha pensado em ir a Uganda… Interessante mesmo!
Ana Paulo Fidelis, mete no teu roteiro. E não te arrependes 🙂 bjksss e boas viagens…
Muito bom texto, Rui! Como sempre!
Com tanto “mundão” a conhecer, a Africa nunca esteve em meus roteiros (apesar de me interessar por alguns locais).
Obrigado, Juliana Moreti 🙂 Posso retibuir os elogios. Experimenta África e vais ficar VICIADA 🙂 bjksss
Sensacional Rui. Adorei cada detalhe! Tenho muita vontade de conhecer a Africa e a cada post como este esta vontade aumenta muito! Imagino que esta viagem foi uma experiência incrível e inesquecível!
Obrigado, Itamar. Sim, foi mais uma excelente jornada. Aconselho fortemente 🙂 Abraço e boas viagens!
viajei em seu texto. naveguei pelo lago e reconheci feições e gestos afetuosos de um povo simples e que me parece hospitaleiro.
não é meu plano de viagem, mas seu texto me tocou.
parabéns!
Obrigado, Vaneza, pelas palavras 🙂 E um 2017 pleno de estimulantes viagens! Beijinho
Excelente artigo e história. Também gosto de locais com poucas pessoas. Nem sempre foi assim, mas agora é. Haja liberdade e espaço para abssorver estas experiências…. mágicas.
Uganda não estava nos meus planos, mas preciso repensar depois desse post! Que lindeza de detalhes e de poesia nesse post 🙂
Adoro seus relatos Rui, muito bom! Nós acabamos ficando presos nos países de sempre ou aqueles que ganham algum hype. Obrigado por abrir esse horizonte.
Lindo destino. África em geral é um continente fascinante. Grande abraço desde o sul de Marrocos.
GRANDE João, já esteve mais longe visitinha ao teu canto marroquino 🙂 Abraço!!
Rui, relato sensacional, como sempre! Achei triste a história dos sapatos, mas, infelizmente, é a realidade de muitas pessoas (não só de Uganda)…
Abraços
Carolina
Meu sonho desde criança é conhecer a Africa. Um dia vou realizar ele. Acredito que muitos lugares lá tenham esta história triste, como relatada, mas precisamos conhecer e ver de perto algumas realidades!!!
Uau! Que post lindo! Em texto e fotos incríveis! Um sonho de lugar e cultura a conhecer!
Obrigado, Cristina 🙂 Beijinho e boas viagens…
Olá Ruy!
Que descrição fantástica desta experiencia pela África você nos trouxe! Incrível os detalhes e as fotos deste post.. Cada parágrafo faz com que nos sintamos vivenciando o que você vivenciou!
Um abraço, Flávio.
Flávio, muito obrigado pela simpatia das palavras. Grande abraço e boas viagens!
que paisagem magnífica e deve ser mesmo incrível visitar um local tão rico culturalmente, mas de difícil acesso aos brasileiros. Um sonho seria desbravar a África. Abraços
África é um destino mesmo muito interessante. Adorei esse lugar e foquei naquela rede na beira do lago. Era lá que eu queria estar relaxando nesse momento! muito legal o seu relato, muito gostoso ler suas palavras!!
Muito obrigado, Aninha Lima 🙂 Beijinho e boas viagens…
Rui, esse cenário que relatastes com incrível sabedoria é SENSACIONAL. Me fez lembrar alguma película hollywoodiana, talvez Avatar, ou seja, outro mundo. E a simplicidade das pessoas, do lugar, realmente faria muita gente economizar com terapias. Parabéns pelo texto poético e muito bem descrito!
Francisco, obrigado pelas palavras ‘inspiradoras’. É para partilhar experiências que existe o Bornfreee 🙂 Grande abraço e boas viagens!
Wowww, deve ter sido realmente uma experiência incrível eim!
Que vista linda desse lago.
Obrigado por compartilhar
Obrigado, Diego. Abraço!
Lindo seu post! Realmente a Africa tem lindas atrações que contrastam com a pobreza da população.
Rozembergue, África é um destino riquíssimo a todos os níveis… o “branco” é que tem ofuscado o seu encanto (ao longo da história…)…